Transmutação - entre instantes... Francisco Valverde Arsénio


No lado avesso do corpo, ela cresce por dentro da memória, pisa o chão e há forças que lhe fogem das mãos. Hesita entre correr e ficar parada, entre o simples e o complexo, entre o nada e o todo. Olha-se como tantas vezes fez, retoma-se no espelho em gestos certos e falhados e remove o rosto metamorfoseado pela manhã. Olha-se, investiga-se, mira-se de corpo inteiro, olha os olhos e a moldura que os suporta, sabe quem é mas não se encontra. Olha-se e vê o vestido pendurado na cadeira, um frasco de creme tombado e um sorriso de solidão. As gavetas estão abertas, vazias e cheias de sonhos, a porta está encostada e o vento assobia no outro lado da parede, ouve sons mas desconhece o sorriso desenhado no espelho. Olha-se, sabe-se ali, ironiza e convive com a situação gravada numa película a preto e branco, apetece-lhe chorar mas não tem olhos de menina. Olha-se e vê sombras formarem desenhos no tecto do quarto, o seu corpo ocupa todo o espaço no espelho como as palavras que escreve no caderno. Olha a cama de madeira e sente frio, quer sorrir mas os lábios ficam-lhe colados no rosto, olha novamente para a gaveta vazia e aperta as mãos uma contra a outra, respira fundo e os pensamentos estagnam dentro de si… a noite aparece sem se dar conta.

Faz-se silêncio na colcha branca dobrada a dois terços e há barulhos dentro de si, barulhos que chocalham como água numa garrafa mal cheia. Pestaneja e o espelho parece estilhaçar-se, olha os bocados e estes não encaixam uns nos outros, no seu peito há queixumes e noites vazias como as gavetas. Não sabe o que sente nem que palavras usar no pensamento, tem o corpo inerte quando se entrega, há um vácuo nos desejos e os seus lamentos tomam forma de pronomes indefinidos. Uma parte de si vagueia para lá da sua passividade e entrega-se noutras latitudes. Olha o corpo desnudado e sente-se sozinha, a porta está aberta e deixa que um murmúrio lhe invada o quarto. Olha-se e recorda quando corria à chuva e tinha de encolher a alma para caber entre as gotas, e estas, ao caírem nos seus olhos, deixavam rastos de músicas que não inventara. Fugia das paredes para que a água lhe trouxesse palavras esquecidas e estas atropelavam-lhe os passos e desorientavam-lhe os gestos. Saltitava no espelho de água trôpega, como se o coração se quisesse desprender das veias.

Vem a noite e o lado avesso do corpo esconde-se e fica com medo que o sono lhe traga o céu vazio de estrelas. Tem medo de atravessar o quarto com a luz mortiça do candeeiro e o coração fecha-se no peito como um punho cerrado. Queria que as lágrimas lhe assomassem nos olhos mas não lhe apetece chorar e dá um retoque nas palavras que dirá quando sonhar. Ri-se e olha-se novamente… num repente reconhece a figura por entre os bocados do espelho, do outro lado, ela sabe que dois braços a esperam e o rio deixar-se-á navegar.



Francisco Valverde Arsénio

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