Make my day... Ana Fonseca da Luz


Hoje, acordei furiosa. Depois, com o passar dos minutos, entre bocejos e palavrões carregados de ódio e de pragas ditas em surdina, senti-me um pouco melhor.
Arrasto-me até à cozinha, com o robe de chambre ponta abaixo, ponta acima e umas meias de lã que já conheceram melhores dias. Engulo maquinalmente o meu copo de leite com chocolate bem quente, acompanhado pelo meu bom amigo e companheiro já de outros carnavais, o meu querido Lexotan.
Quem inventou aquele comprimidinho (e, quem diz aquele, diz qualquer um da família dele) tem de estar no céu. A mim, renova-me e adormece-me a fúria e não só. Tenho de admitir que, por vezes, me adormece um pouco a inteligência. Se é que tenho alguma. Há dias em que tenho as minhas dúvidas.
Depois do passeio até à cozinha, mergulho na casa de banho e repito os rituais que todas as mulheres minimamente vaidosas cumprem todos os dias, para sairem daquele espaço não só lavadinhas, mas também alguns anos mais novas. Ele é o exfoliante, o hidratante, o creme de dia, o rímel, o blush e um sem fim de coisas que não lembram ao diabo e que só podem ter sido inventadas por uma mulher. Depois, é o duelo com a roupa que separei de véspera para vestir, mas que, afinal, devido ao estado de nervos e de irritação em que me encontro, me é impossível usar. De tudo o que tinha escolhido, só se aproveitou o perfume, porque há anos que uso o mesmo.
Volto a deitar-me na cama já feita e pergunto-me por que raio é que acordo todas as manhãs, se a vida é uma porcaria sem jeito nenhum.
Lá vou eu agora para o emprego de merda, depois de mais um chorrilho de asneiras ditas mentalmente, enquanto amaldiçoo a minha mediocridade que, afinal, acabo por descobrir que é contagiosa. Foi ele quem me contagiou… Quem me vê, de manhã, a caminho do meu ganha-pão, garante certamente que levo o mundo às costas. Mas não é assim. É só o desânimo e a mediocridade, fiéis companheiros de há longos anos.
De repente, acende-se uma luz no meu cérebro cinzento escuro, escuro. Paro o carro e resolvo telefonar para o emprego. Digo que não sei o que tenho, mas que não estou bem. Sinto-me indisposta e um pouco febril. Engoliram. Conhecem-me há tantos anos que sabem que seria incapaz de faltar, se não fosse mesmo preciso.
Mais um problema para resolver. O que vou eu fazer com este dia só para mim? Marido, não tenho. Vai ficar três dias no Norte, em serviço, graças a Deus. Pena que não sejam três meses. Talvez mesmo três anos… Ah, doces pensamentos. Como a mente de uma mulher pode ser perversa! Imagino-me sozinha em casa três meses. O sofá grande só para mim. A jantar quando e o que me desse na bolha. Férias para o comando da televisão. O desgraçado tem noites em que leva tantos apertões que só não vomita, porque não calha. Ar condicionado ligado de manhã até à noite. E, na aparelhagem, Mozart, até cansar.
Mas, não vale a pena sonhar. Afinal, são só três dias sem marido e um dia sem ir trabalhar. Sinto-me como se tivesse acabado de faltar às aulas do liceu, para ir para as compras e bater pernas pelas ruas, só pelo prazer de não fazer o que devia ser feito.
Sento-me no carro, ao sol, a fumar um cigarro. Há tanto tempo que não fumava, que até me assustei com o preço. Paciência. Vale o dinheiro. Belos cigarros. É pena que já não haja Ritz.
Depois de dar voltas ao miolo, a pensar o que hei-de fazer com este dia, ocorrem-me pensamentos bucólicos e apetece-me ir ver o campo. O campo? E por que não a praia? Estou a pouco mais de meia hora de caminho!… Está decidido. Vou até à praia.
De repente, os remorsos. Há semanas que o meu filho mais novo me anda a pedir para ir apanhar conchas, para um trabalho sabe-se lá de quê.
Não, não vou à praia. Já sei que sou mulher para trazer os sapatos cheios de areia e duas ou três conchas no bolso do casaco. Lá era eu apanhada…
Posso sempre ir ao shopping e tentar gastar pouco dinheiro. Mas também isso me parece uma missão impossível. A verdade é que até me dava jeito, porque o mais velho está a precisar de meias. Se ele não fosse meu filho e do meu marido, havia de dizer que ele era filho da águia do Benfica, porque as unhas dos pés dele são autênticas garras demolidoras… Ponto assente. Vou ao shopping. Como medida de precaução, deixo o Visa no carro e levo só o Multibanco, não vá o diabo tecê-las…
Cá estou. Sinto-me poderosa. Sozinha, não linda mas interessante q.b., e feliz.
Entro na loja das meias e começo a procura de meias bonitas e baratas, sem dar muita atenção à minha volta. Como sou sempre um bocadinho indecisa quando faço compras para os outros, vou saltitando de prateleira em prateleira, à procura de algo que me agrade.
Mesmo ao meu lado, um miudito de 3, 4 anos olha para mim e sorri. Retribuo o sorriso e digo-lhe: – Tu és muito giro, sabias? O pequeno corre e vai esconder-se atrás das pernas de um homem, muito bem apessoado, diga-se de passagem, e que, provavelmente, é o pai. Continuo na minha luta com as meias e sinto que alguém me puxa pela ponta do casaco. É o pequeno, que se vira para mim e me diz: – O meu pai diz que tu também és muito gira.
As minhas bases tremeram. Fiz uma festa na cabeça do miúdo e, parva, completamente parva, olhei para aquele pedaço de mau caminho que tinha mandado aquele recado tão simpático pelo filho. Ele acenou-me com um par de meias pretas que tinha na mão e eu com umas verdes. Dei mais duas voltas, para dar tempo que ele saísse da loja, para eu poder sair depois, sem nenhum constrangimento. Voltei-me para as prateleiras, mas a verdade é que já nem via as meias. Quando calculei que ele já tivesse saído, dirigi-me à caixa e paguei, não sem antes deixar cair os óculos de sol que tinha na cabeça e enganar-me no código do cartão.
Já fora da loja, o pai e o filho estavam de mão dada. Enchi o peito de ar, ajeitei o cabelo para trás da orelha num gesto muito meu e, quando passei por eles, fiz uma festa no cabelo do pequeno e sorri ao pai. Ele retribuiu o sorriso e eu ganhei o meu dia.

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