Deixa-te ficar até que eu tenha sono... Ana Fonseca da Luz











- Não vás ainda… deixa-te ficar até que eu tenha sono.
Dizes-me tu com os olhos carregadinhos de mágoas e de lágrimas, enquanto ajeitas a forma do teu corpo, à cama desfeita pelos pesadelos de outros tempos, que a partir desta noite, te vão começar a visitar. É como se te deitasses do outro lado do tempo e esse tempo não te pertencesse. Mesmo assim, enquanto já partes para esse mundo de repouso inquietante e os olhos se fecham contra a tua vontade, dizes mais uma vez com uma voz magoada, de cetim:
- Deixa-te ficar…
Já não terminas a frase que te morre na boca e enroscas-te numa posição de defesa, de cria assustada, sem mãe. Passo-te a mão pelos cabelos e invejo-te essa serenidade que aparentas, mas que eu sei que é passageira. Depois também eu caio num passado distante enquanto te olho e sinto-me mais só do que nunca. Pudesse eu voltar atrás e tudo seria diferente. Poderia ser diferente mas, será que seria melhor?
Velo pelo teu sono sobressaltado de mágoas e dói-me pensar que um dia pensei em abandonar-te, deixar-te entregue a ti mesmo, para que crescesses. Cheguei a ter as malas feitas, escondidas debaixo da cama para que não soubesses que um dia chegarias a casa e não me voltavas a ver. Cheguei a despedir-me dos amigos sem que eles suspeitassem que o meu “até depois” era um “até nunca mais”, sem que sonhassem que o meu abraço de despedida, era mais forte e mais intenso do que o habitual, cheguei mesmo, imagina tu, a arranjar motivos para uma discussão, para que eu pudesse sair da tua vida sem remorsos.
Todos os dias me imaginava a sair pela porta sem olhar para trás e todos os dias inventava mais uma desculpa para ficar, mais um dia… E tu chegavas feliz e despreocupado, apesar de amaldiçoares a rotina castradora que todos os dias nos engolia mais um bocadinho. E eu estava lá, sempre, com as malas escondidas debaixo da cama à espera da coragem que não vinha, à espera da discussão que não sucedia, à espera de no outro dia conseguir transpor a porta, a própria vida, e correr para os braços da liberdade desejada, que me aguardava e chamava por mim. Depois, quando via que mais um dia caía no regaço da noite e que eu ainda ali estava, amaldiçoava-me por não ter sido a mulher corajosa que eu sonhava ser. E envelhecia, apagando-me todos os dias mais e mais.
Enfeitava então os pensamentos com todos os sonhos que ainda haveria de concretizar, no momento em que me tornasse outra e isso, de certa forma, dava-me uma nova força para vencer mais um dia que se esvaía na quietude do meu desassossego. A ti, tudo te parecia passar ao lado, continuavas no teu mundinho despovoado de sonhos e eu, por vezes, enquanto te espreitava pelo canto do olho, enquanto te ocupavas de ninharias, acabava por invejar aquela tua falta de horizontes, porque de certo modo eras muito mais feliz do que eu, que não parava de sonhar com um mundo de coisas que queria fazer, enquanto o tempo se esvaía matizado de mágoas e vazios. Escoava assim os meus dias, fazendo de conta que o mundo era cor-de-rosa, enquanto, impacientes, as malas aguardavam em vão, debaixo da cama, à espera de partirem sem saberem bem para onde.
Um dia, cheguei a casa mais tarde do que o habitual. A casa sufocava-me, engolia-me com afazeres que eu detestava. Na rua respirava melhor…
Encontrei-te taciturno, sentado na cama com as minhas malas empoeiradas e abertas, desnudando assim o segredo da minha ânsia de partir. Fiquei muda. O coração caiu-me aos pés e nesse momento senti-me a mulher menos corajosa do mundo. Uma verdadeira cobarde. Choravas! Se soubesses como me doeram as tuas lágrimas…
Fiquei parada. à porta, à espera das perguntas que nunca fizeste.
E eu continuava ali, imóvel, muda e sem saber que rumo tomar. Era tão fácil ir embora agora. Era só voltar a fechar as malas e partir. Afinal, nem casados éramos. Tinha-nos unido um dia, uma grande paixão, que foi morrendo à medida que nos fomos descobrindo e vendo que afinal não éramos feitos um para o outro e, que ao contrário do que dizia a velha canção de Rui Veloso, muito mais era o que nos separava do que o aquilo que nos unia. Continuavas a olhar-me em silêncio ora implorando-me que ficasse, ora suplicando-me que saísse para sempre da tua vida. E eu ali, indecisa…
Finalmente disseste-me de cabeça baixa e de olhos turvos – vou-me deitar, estou cansado…
Passaste por mim, sem me olhares, com os olhos colados nos sapatos, deixando-me inquieta e infeliz. E agora, o que quero eu afinal?
Olho para as malas que me apontam a liberdade por que tanto anseio e oiço-te movimentar no quarto ao lado, lentamente, como se fosses um velho sem forças para continuar a caminhada. Encho-me de um vazio estranho como se só agora me apercebesse que não posso, nem sei mais viver sem ti. Desfaço as malas desajeitadamente, porque te quero reencontrar rapidamente, embora continue sem o que te dizer…
Estás sentado na cama de cabeça baixa, triste, apagado, à espera que eu te diga alguma coisa, mas eu estou sem palavras. Restam-me apenas gestos e sentimentos confusos e desalinhados. Finalmente, olhas-me e dizes-me baixinho enquanto te aninhas na nossa cama:
- Não vás ainda…deixa-te ficar até que eu tenha sono.

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