O lugar das coisas... Ana Fonseca da Luz











Hoje, amanheci inquieta. Apeteceu-me fumar logo cedo, coisa que não é costume, e não consegui tomar o pequeno almoço. Era como se estivesse a adivinhar uma desgraça ou, simplesmente, um dia de azar. De quando em vez, tentava respirar fundo, mas não conseguia.
Como era domingo e estava sozinha, estendi-me no chão da sala, pus a tocar o meu CD preferido de Mozart, fechei os olhos e tentei relaxar. Nada. A angústia, ou lá o que era aquilo que eu sentia, não me deixava sossegar. Sem saber bem porquê, talvez só para ver se conseguia pensar em coisas mais despreocupadas, lembrei-me de ler as cartas. Há muito que não o fazia. Aliás, a mim nunca o fazia. Costumava ler as cartas às minhas amigas e elas diziam que eu acabava sempre por adivinhar alguma coisa. Pura coincidência, porque me limitava a deitar as cartas sobre a mesa, acendia uma vela e colocava um copo com água à minha frente. Depois, como nunca tive pachorra para decorar o que significava cada uma das cartas, lia no livro o que elas queriam dizer e, assim, ia adivinhando o futuro. Fosse como fosse, dava para nós nos rirmos e passarmos o tempo.
Era isso. Hoje, ia deitar as cartas para mim. Mas, onde é que eu as tinha? Há tanto tempo que não as deitava!… Deixei de as deitar, no dia em que li nelas que uma amiga muito querida estava às portas da morte. Como ela morreu, passado algum tempo, de um acidente sem pés nem cabeça, arrumei as cartas e disse às minhas amigas que nunca mais faria aquilo. Todas concordaram, porque ficaram tão assustadas como eu.
Mas, hoje, ia deitar as cartas só para mim. Onde estariam? Só podiam estar em dois sítios. Ou na gaveta de cima da minha secretária, ou na velha cómoda do quarto de visitas, que era onde eu guardava todos os meus tesouros. Eram tesouros banais para qualquer outra pessoa. Para mim, verdadeiras relíquias. E aquele nó que me apertava o estômago estava cada vez mais apertado.
O meu reino por um cigarro!…
A gaveta de cima estava cheia de roupas minhas, de quando era pequena. Os sapatos do meu baptizado, a touca, o meu primeiro fato-de-banho, vermelho, todo em favinhos de mel.
Numa caixa antiga, de papelão, as luvas que costumava levar aos casamentos, quando já era mais velhinha, o meu primeiro véu. Sim, porque eu ainda sou do tempo em que se levava véu à missa, e umas meias de renda que mais pareciam meias de forcado.
A gaveta do meio estava destinada a outras coisas. Estava cheia de caixas que eu me tinha dado ao trabalho de forrar com tecido aos quadradinhos vermelhos, verdes e brancos. Dentro das caixas, guardava o livro da primeira classe, o meu primeiro catecismo e a minha primeira prova, com um Bom, a vermelho. Noutra caixa, maior, guardava cartas e fotografias de namorados, todas elas ordenadas por datas. Havia ainda uma caixa pequena, onde guardava bijuteria de mil cores e, diga-se em abono da verdade, sem gosto nenhum.
Por fim, na gaveta de baixo, aquela que menos me apetecia abrir, guardava todos os meus desgostos, todas as minhas mágoas e pedaços da minha vida que gostaria de esquecer, mas que não podia, porque a minha vida não eram só dias felizes. Nem a minha, nem a de ninguém!…
Talvez fosse mais fácil deitar todas aquelas coisas fora. Mas, não podia. Se o fizesse, estaria a tentar enganar-me. Estaria a negar evidências e isso era impossível. A vida é isso mesmo: dias felizes e dias em que mais valia não acordar, de manhã.
Abri, finalmente, a gaveta de baixo. O nó que sentia no estômago era, agora, tão apertado que quase tinha vontade de vomitar.
O meu reino por um cigarro!…
Era a única gaveta que estava desarrumada… Era como se eu não quisesse arrumar aqueles fragmentos da minha vida. Assim desarrumados, talvez não fossem meus. Talvez pertencessem à vida de outra pessoa. Mas, não havia lugar para dúvidas. Eram, realmente, pedaços da minha vida. Um lenço ensanguentado, um rolão de cabelos embrulhados num pedaço de papel, a correspondência entre mim e o meu advogado. Um bilhete de tourada de 1976, uma fotografia de casamento colada com fita-cola e uma certidão de óbito.
As cartas estavam lá, espalhadas, desordenadas, como, aliás, tudo o que estava naquela gaveta. A última vez em que lhes tinha mexido tinha sido quase há três anos. Valeria a pena querer adivinhar o futuro? Como raio é que a porcaria das cartas me iam dizer por que é que eu tinha amanhecido inquieta?
Fechei a gaveta e deixei o caos reinar dentro dela.
O meu reino por um cigarro!…
O nó no estômago continuava lá. Mas o meu coração parecia mais sereno. Talvez por ter voltado a ver aquele lenço com o meu sangue, que ele me fez derramar… Mas, apesar disso, continuava viva. Talvez por ver aquele cabelo que ele me tinha arrancado à mão cheia, mas que tinha voltado a nascer. Talvez porque, segundo dizem, aquilo que não nos mata nos torna mais fortes.
Aqui estou, novamente deitada no chão da sala. O CD acabou. Só a minha angústia é que não. Quem sabe se não vou voltar ao quarto de visitas, voltar a abrir a gaveta de baixo e se, de uma vez por todas, sem medo, vou organizar a gaveta dos meus desgostos, tão bem como estão organizadas as gavetas da minha infância e da minha juventude?
O meu reino por um cigarro!…

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