ESSE FOGO QUE ME QUEIMA... Ana Fonseca da Luz










Tirei o dia para arrumar a casa. Mas, em vez de arrumar a casa, resolvi arrumar as ideias. A casa pode ser sempre arrumada, em qualquer dia. Porém, as ideias não podem andar desordenadas por muito tempo, porque, por vezes, a nossa saúde mental depende disso, de uma boa arrumação.
A lenha arde na lareira, numa labareda colorida e forte. É um fogo que quase me queima! Não, não é o da lareira. É o do meu coração.
Há alguns meses atrás, encontrei o meu primeiro amor, num casamento. Não nos víamos há anos. Por ironia do destino, ficámos na mesma mesa, dançámos juntinhos, porque a música assim o pedia e até, ao sairmos, vimos que os nossos carros estavam lado a lado. Despedimo-nos com um beijo rápido, mas cheio de promessas veladas e de um amor que nunca morreu, apesar de estarmos mais de vinte anos sem nos vermos. Ele pediu-me o número de telefone, mas eu não lho dei. Afinal eu sou casada e ele também. A partir desse dia, a minha vida passou a ter outro sabor. Não sei de sabe bem ou mal. Só sei que o sabor é outro. Dou por mim a rir sozinha, de coisas que dantes não tinham graça nenhuma, sempre com a cabeça nas nuvens e o coração numa exaltação fora do comum. Perdi o apetite, perdi peso e dei por mim a ouvir a mesma música, vezes e vezes. A música é sempre a mesma, “Without You”. Mas, afinal, quantos anos tenho eu? Vinte ou quarenta ?
Volto a olhar para o aspirador e para o pano do pó, mas opto pelo sofá. Abro o livro que já ando a ler há semanas, mas que não passa do primeiro capítulo, porque perco o meu olhar naquele emaranhado de letras que mais me parecem chinês e que, por isso mesmo, não fazem qualquer sentido. Se eu tivesse asas!… Se eu tivesse asas… voava
De novo o apelo do aspirador é mais forte que a vontade de alinhar as ideias. Pego no aspirador e, antes de premir o botão para começar aquela árdua batalha, o meu telemóvel toca. Não conheço o número, mas atendo na mesma. Reconheço imediatamente a voz. È inconfundível.
- Olá! É o Ricardo.
Por momentos perco a voz e, numa fracção de segundos, faço uma análise rápida, tentando adivinhar onde foi ele descobrir o meu número.
- Estou!… Graça!… Sou eu, o Ricardo!..
- Ricardo!…Mas… como é que descobriste o meu número? Não me lembro de to ter dado.
- Não deste. Imagina que, ontem, encontrei o teu irmão. Não o via há anos! Disse-lhe que gostava muito de falar contigo e ele deu-me o número.
Mentalmente registei na minha agenda:”Cortar a língua do meu irmão, na próxima vez que estiver com ele”.
- Então, como estás, Gracinha? Tudo bem contigo?
Abanei a cabeça, como se ele me pudesse ver. A língua continuava presa e o raciocínio mais lento que o habitual.
- Estou, estou bem. E tu ?
Fez-se silêncio, do outro lado da linha. Depois, veio a resposta que me deixou sem ar, sem fala e sem força nas pernas.
- Não. Desde que te encontrei, naquele casamento, nunca mais estive bem. Penso em ti mais do que devia, procuro-te, na rua, como se sentisse que também tu estás à minha procura. Tenho saudades tuas e… Fala, diz alguma coisa, não me deixes a falar sozinho. Não me digas que nunca mais pensaste em mim. Que nunca mais pensaste naquele beijo, na nossa música. Responde.
Eu queria, mas não conseguia. Tinha um nó que me apertava a garganta e que me fazia quase o coração sair pela boca. Finalmente, num fio de voz, consegui dizer:
- Não devias ter telefonado. Era melhor!…
- Melhor? E deixar de te dizer que nunca te esqueci. Que, por mais anos que passem, hás-de ser sempre o amor da minha vida? Ainda hoje não sei por que acabámos. Nós gostávamos tanto um do outro, tanto, que chegava a doer, como tu dizias! Lembras-te?
Lembrava-me muito bem. Mas, por que diabo teimava ele em acordar moscas que há tanto tempo estavam adormecidas?!
- Lembro-me. Lembro-me muito bem. Mas recordar isto não nos faz bem. A mim, pelo menos, não faz. É como se se abrisse uma ferida, que realmente nunca chegou a fechar.
- Temos de nos ver, Gracinha.
Gracinha?! Mas será que este homem quer que eu morra ao telefone?! Há tanto tempo que ninguém me chamava Gracinha! E então, dito por ele, era como molhar a sopa no mel. Pensei alguns segundos e, num momento de rara coragem, concordei em tomar café com ele, no dia seguinte.
- Então, amanhã, no nosso velho café. – disse, numa voz calma e doce.
- Até amanhã. Um beijo. – concordei.
- Um beijo. – repetiu.
Agora é que a limpeza está completamente fora de questão. Deito-me no sofá e realmente nem sei se tenho os olhos fechados ou abertos. Sei que não vejo, não oiço, só levito. Mas, o que fui eu fazer?! Concordar em tomar café com o Ricardo era o mesmo que assinar a minha pena de morte que é como quem diz, acabar com o que resta do meu casamento.
O resto do dia foi passado com a cabeça nas nuvens. Por sorte, estava sozinha. Assim, não era apanhada com aquele ar estúpido que, por mais que quisesse, não conseguia disfarçar.
Nessa noite, antes de deitar, e como sempre faço, consultei o meu telemóvel. Tinha uma mensagem dele. Dizia apenas:”Um amor como o nosso, que sobrevive a tantos anos de separação, merece recompensa…”
Escusado será dizer que a minha noite foi em branco. O coração ardia-me no peito e, às quatro da manhã, levantei-me e deambulei pela sala, com um cigarro aceso, mas que mal fumei. Na minha cama, o meu namorado dormia serenamente. Há anos que o nosso "namoro" estava acabado. Unia-nos apenas um sentimento ao qual eu não sabia dar nome. E eu ali, a pensar no dia seguinte e no café que ia tomar e que eu sabia que não me ia saber a nada.
Quando cheguei ao velho Café Império, ele já lá estava. Levantou-se, quando me viu chegar e deu-me um beijo silencioso e lento, carregado de segundas intenções. Correspondi, também com mil pecados a povoarem-me a cabeça. Puxou a cadeira, para eu me sentar e só depois se sentou à minha frente. Continuava o mesmo “gentleman” de há vinte anos. Olhámo-nos em silêncio. Olhos nos olhos. Continuava tão, minto, muito mais interessante agora. Os olhos escuros tinham mais brilho e até as rugas lhe tinham enriquecido as feições. Antes de me dizer o que quer que fosse, agarrou a minha mão, que repousava ao lado do maço de cigarros e aquele fogo que me atormentava há meses instalou-se todo na minha cara. Senti-me corar, como uma menina de quinze anos. No entanto, não tirei a mão. Ao contrário disso, apertei-a e ele retribuiu o gesto. Depois, beijou-me a palma da mão. Era assim que ele costumava fazer, era assim que ele me desarmava. Era assim que ele me tirava as forças nas pernas. Aquele silêncio dizia tudo o que havia para dizer. Não era um silêncio vulgar, porque os nossos olhos diziam tudo o que as nossas bocas não tinha coragem de dizer. Finalmente, alguém falou. O empregado.
– O que desejam?
Aquela voz quebrou o nosso encantamento e despertou-nos daquele estado de transe em que nos encontrávamos. Ele pediu dois cafés e eu retirei a minha mão da dele, para acender um cigarro. A sua mão ficou sobre a mesa, à espera da minha. Que saudades daquelas mãos. Depois de acender o cigarro, devolvi-lhe a minha mão. O constrangimento inicial tinha desaparecido por completo. Era como se nunca nos tivéssemos separado. Era como se tivéssemos sempre sido namorados.
- Olá! – disse ele em tom descarado. – Tinha tantas saudades tuas!…
- Olá! – respondi, sempre olhos nos olhos. – Também eu, meu Deus, que saudades!
Os cafés chegaram, fumegantes e convidativos. Bebemos em silêncio. Não dissemos mais nada. Nada mais havia a dizer. Levantámo-nos. Ele ajeitou a gola do meu casaco e eu o cachecol dele. O coração disparava-me no peito. A boca estava seca e sentia os olhos húmidos. Também os dele brilhavam.
Quando chegámos à rua, os nossos carros estavam lado a lado. Ainda podia escolher. Ainda podia fazer como há meses atrás, dar-lhe um beijo rápido e fugir. Mas o fogo que me queimava o coração não me deixou. Ele abriu-me a porta do seu carro, para que eu entrasse. Sempre em silêncio, só os nossos corações falavam. Já dentro do carro, perguntou-me:
- Vamos?
- Vamos. – respondi.
É que não se pode passar pela vida sem fazer história, sem deixar rasto. Existir apenas não chega. É preciso viver… Há que colorir e adoçar o algodão que nos envolve. Só assim vale a pena ter passado por cá.

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