A Lua no céu e a porta está perra... Ana Fonseca da Luz


O silêncio majestoso faz-se ouvir. Não fosse a porta que continua perra há tantos anos, para me servir de alarme sempre que alguém entra, poder-se-ia dizer que tudo continua como sempre foi.
Gosto que assim seja. Não gosto de grandes alterações. Contento-me com as minhas rotinas, apesar de todos os dias reclamar delas. Apesar de as maldizer, não sei viver sem elas.
Gosto de te ver dormir, com um braço sobre os olhos, para que a claridade não te incomode, com o gato aos pés, e a lua redonda no céu, a espreitar-nos à janela.
O mar bate nas rochas. Ouço-o daqui. Só ele e o ranger da porta me afastam do meu tão ensurdecedor silêncio.
Procuro o banquinho que tenho junto à janela e aconchego-me nele, tapada com uma manta que já conheceu melhores dias, mas que me acompanha há anos.
Esta manta tem tantos anos quantos tem esta casa.
Aqui, em frente ao mar, como sempre sonhei…
Há sonhos assim, que nos acompanham a vida toda e que, por mais vidas que vivamos, nunca conseguiríamos realizar.
Mas esta casa… esta casa, pela qual eu me apaixonei, mal entrei nela e a porta me rangeu, como que a dar as boas-vindas, é um sonho que já vem de outras vidas e só agora consegui realizar.
É nela que quero morrer, porque esta não é só a minha casa. Aqui é o meu lar!
É um rés-de-chão simpático, com um terraço grande e convidativo, que dá para as traseiras e que eu transformei, com a tua preciosa ajuda e gosto pelas flores, em orquidário. Outro sonho antigo…
À frente, tenho o mar. Que mais posso eu querer?
Estabeleço com o mar uma relação de equilíbrio. Quando ele está revolto, acalma-me e quando está calmo, acende-me.
É como se nos completássemos. É por isso que todos os dias, mal me levanto, perco o meu olhar nele, durante uns instantes, para me encher de azul e, assim, ter forças para viver mais um dia.
Viras-te no sofá, que é só teu e onde gostas de dormir longas sestas, no fim do almoço e antes de ires para a cama.
Olho-te com atenção. O teu cabelo, outrora farto, é agora uma sombra do que um dia foi. Os teus olhos têm agora um brilho mais sereno e que, provavelmente, as outras pessoas confundem com tristeza e, no entanto, continuas um homem bonito. Para mim, serás sempre bonito e o meu melhor amigo.
Pesam-te os anos, do mesmo modo como me pesam a mim e, no entanto, apesar das rugas, dos cabelos brancos, os nossos corações permanecem tão jovens como no dia em que nos conhecemos.
Embala-me a certeza de que vivemos um bonito amor, que tivemos uma vida partilhada e abençoada de alegrias e tristezas. Que mesmo os anos em que estivemos separados e distantes, nunca o estivemos realmente, porque um fio, ainda que invisível, sempre nos uniu.
É claro que a paixão, aquela paixão quase doentia que nos amarrava um ao outro, ao fim de algum tempo desapareceu, mas a verdade é que uma bela cumplicidade sempre nos uniu, sempre nos manteve lado a lado.
Depois da paixão veio o carinho, a amizade profunda e uma cumplicidade tão grande que basta olhar-te, para saber o que me queres dizer.
Eu sei que, para ti, sempre hei-de ser um mistério, que nunca me conseguirás ler como eu te leio a ti, mas… provavelmente, é por isso que ainda hoje estás “apaixonado” por mim, como tu costumas dizer e eu finjo acreditar.
Já não pinto mais os cabelos. Deixei-os finalmente mostrar a sua verdadeira cor e a verdade é que gosto deles assim. Lembram-me os da minha mãe. Parecem um punhado de cinza e prata que combinam tão bem com a cor do mar, ao entardecer.
Deixo-te a dormir no sofá. Não sei como é possível alguém gostar assim tanto de dormir, e abro a porta que me separa do mais belo espectáculo de mundo. O mar!
Em frente à porta, tenho duas cadeiras espreguiçadeiras, onde gostamos de ver os dias terminarem. É como se estivéssemos em frente a uma tela e o mar, as gaivotas e a lua no céu representassem só para nós.
Deixo-me ficar, enrolada em mim e nas minhas mais profundas lembranças e perco a noção do tempo. Olho para as minhas orquídeas, que chamam por mim, a pedir cuidados. Mas não consigo. Quero este bocadinho só para mim. É como se a vida se tivesse esgotado no momento em que soube que pouco mais tempo ia andar por este mundo.
Escondi-te a verdade… É melhor assim. Quando chegar a altura certa, os nossos filhos te contarão.
Sabes o que mais me custa? É deixar-te sozinho. Sei o quanto dependes de mim. O como sempre dependeste de mim, do meu jeito atento de olhar por ti, pelas coisas, das pequenas coisas que tu fazias grandes e eu sempre minimizei, com o meu jeito despreocupado de ver as coisas.
Quem é que vai, depois, dar-te os medicamentos a horas? Quem te vai perguntar todos os dias se dormiste bem? Quem é que vai fingir que te ouve quando falas de futebol?
Sabes? Ainda não morri e já tenho saudades de mim e de tudo aquilo que não vivi por tua causa, por causa dos nossos filhos e, ao fim e ao cabo, por minha causa, porque, apesar de constantemente reclamar da minha permanente insatisfação, nada fiz para preencher os meus dias, de maneira a ser realmente feliz.
Assumi este papel de mãe de toda a gente e, como boa mãe, fui-me esquecendo de mim…
A porta perra, empurrada pelo vento, abre-se agora para trás, trazendo-me o perfume da maresia de que tanto gosto, afastando assim este desprezo que por vezes sinto por mim, esta minha revolta tão bem dissimulada e que nem a minha filha mais velha, que é psicóloga e que constantemente me tenta ler nas entrelinhas, consegue decifrar.
Continuas o teu sono tranquilo e alegro-me que assim seja. Não suportas o gato e, no entanto, ele não te larga.
Também vou ter saudades de ti…
Há já alguns dias que esta dor, que começou por ser fininha e suportável, me incomoda, mais e mais. É como se me estivesse a dar sinal, para que me prepare para o que está para vir. Tu de nada te apercebes. É melhor assim. Cá continuo a fazer o meu papel de mulher forte, quando, por dentro, já morri. Mas afinal, bem vistas as coisas, já morri há muitos anos…
Tomo mais um comprimido, assim me vou enganando por mais umas horas. E depois, quem é que tem coragem para morrer, numa noite de lua cheia?
A lua está no céu, a porta está perra e eu continuo aqui inteiramente quebrada, escrevendo as minhas memórias que tu, provavelmente, nunca irás ler, porque nunca foste de leituras. Se soubesses a pena que eu tenho de que nunca tenhas feito parte do meu mundo…
Mas pronto, amaste-me muito, eu sei. Foste o meu melhor amigo, eu sei. Mas nunca foste o meu mundo, simplesmente porque sempre vivemos em mundos diferentes.
O barulho da porta acorda-te. Procuras-me pela sala, com os olhos, e reclamas, mais uma vez, porque estou no computador a escrever.
Já nem te oiço…
Fecho o computador e vou-te mimar. É melhor assim…
Ao fim de tantos anos, continuas a dizer que gostas muito de mim e eu sorrio-te…
Voltas ao teu jornal desportivo e eu à minha janela para ver a lua, mais uma vez, sem saber se será a última.
A lua está no céu. A porta está perra e eu estou aqui, ao teu lado, como sempre, até que a vida me deixe, para começar tudo de novo… desta vez, à minha maneira…

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