A nossa amizade... Ana Fonseca da Luz










“Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!”

- Lindo, não é? Sempre gostei deste poema. É o meu preferido. Gosto especialmente da parte em que diz “há nos meus olhos ironias e cansaços”…

Voltas a página do caderninho onde te deste ao trabalho de recolher os teus poemas preferidos. Sempre te conheci assim, apreciadora de pequenas coisas.
Sempre procuraste um significado em tudo, sem nunca descuidar as coisas mais insignificantes, considerando-as sempre importantes.
Hoje vim só para te ouvir, aliás como sempre, porque sei o quanto precisas de falar. Estás sempre tão sozinha…
Tens tanta serenidade no olhar como adversidades já tiveste na vida. Não há dúvida de que és uma mulher como há poucas, uma batalhadora. A vida bem trata de te empurrar para baixo e há alturas em que penso que não te vais reerguer. Mas engano-me sempre. Reapareces sempre com essa força de viver que me dá tanta inveja e que me ensina que, se tu consegues, também eu hei-de conseguir.
Gosto da maneira despreocupada com que te vestes, sem, no entanto, esqueceres nenhum pormenor. Combinas sempre a carteira com os sapatos e o lenço, que é a tua imagem de marca e que sempre trazes ao pescoço, com a saia ou com o vestido. Nada em ti é por acaso e a tua simplicidade é o teu melhor cartão de visita.
Lembro-me de sermos novinhas, muitos novinhas, e de já gostares de pequenas coisas que a nós nos eram indiferentes. Gostavas de ler poemas, enquanto líamos banda desenhada, gostavas de um bom perfume, enquanto nós gostávamos de pintar os olhos e os lábios, gostavas de fechar os olhos, quando ouvias música calma e nós, de saltar ao som de um velho Rock. Às vezes, e acho que por inveja da tua serenidade, criticávamos-te em surdina, mas acabávamos sempre por te achar fantástica e de ficar cheias de remorsos, por percebermos que as nossas quezílias te passavam sempre ao lado.
Mas a vida, muitas vezes, não se compadeceu de ti. Foi ingrata. Dolorosa…
E tu lá estavas para aceitar as coisas e dizer com um pequeno encolher de ombros “é a vida”. E nós, as tuas velhas amigas, a admirar-te, cada vez que uma tempestade se levantava na tua vida e tu a enfrentavas serenamente e com aquele sorriso maravilhoso que sempre te caracterizou.
Hoje estou aqui só para te ouvir. Sei o quanto estás sozinha, o quanto és sozinha, o quanto és só de ti e de toda a gente.
Encostas o teu caderninho de poemas junto ao peito e sei que morres de vontade de me ler outro. Por isso, digo-te:
- E agora, o que vais ler? Sabes o quanto as tuas leituras me agradam, me hipnotizam.
Até a tua imodéstia me agrada, porque sabes que lês bem, que dizes os poemas de maneira que eles nos digam sempre alguma coisa.
Pões os óculos de aros de tartaruga, que já eram da tua mãe, na ponta do nariz e embalas-me com outro poema que me soa a canção de amor, porque até a tua voz é doce e cadenciada, de uma serenidade inspiradora.
E lês-me “Amor é fogo que arde”, de Camões, com uma voz terna e quente que me remete mais uma vez para quando éramos novinhas e to ouvi ler pela primeira vez e me fizeste descobrir, também a mim, a poesia.
E devoramos aquela tarde de amizade partilhada, regada com chá preto e biscoitos de laranja, os nossos preferidos, navegando entre Camões, José Régio, recordações, algumas lágrimas e muitos sorrisos.
É tão bom ter-te como amiga!
Despedimo-nos com um abraço apertado e sincero e um até já, apesar de saberes que o nosso próximo “até já” será dito talvez daqui a muitas luas. Mas tu permaneces sempre com esse sorriso e essa amizade sincera que te escorre em cada abraço que dás e que me transmite uma calma que, de vez em quando, venho procurar em ti.
Sei que, quando eu sair e te deixar mais uma vez entregue à tua solidão, da qual eu sei que gostas, vais arrumar o teu caderninho na gaveta de cima da escrivaninha, até à próxima vez em que eu consiga umas horinhas para estar contigo e que vais sorrir para a fotografia do teu marido, que te deixou há pouco, levado pela morte.
Sei também que vais sentir a minha falta,do mesmo modo que vou sentir a tua, mas que não vais reclamar da minha ausência, porque me respeitas e sabes o quanto eu gosto de partir por longas temporadas para viagens que tu nunca farias, porque a tua natureza é tão diferente da minha.
É isso que nos completa e que fortalece esta nossa amizade, tantas vezes distante, mas sempre tão presente. É uma amizade valorizada e inflacionada com o tempo, com a distância e cheia de memórias, que nos acompanharão para além da morte.
Prometo sempre a mim mesma que, da próxima vez, vou ficar mais tempo contigo, mas não fico, porque o tempo que ficamos juntas é tão precioso que não se mede em minutos, ou horas.
Mede-se em sinceridade e em partilha e a única coisa que te peço é que me deixes continuar a aprender contigo o verdadeiro significado da palavra “amizade”

Nenhum comentário:

Postar um comentário