Pequeno Almoço para Dois... Ana Fonseca da Luz




Era uma espécie de ritual. Ao domingo, o pequeno almoço era o ponto alto do dia. Levantávamo-nos tarde, ao contrário dos outros dias e tomávamos um pequeno almoço requintado, demorado e delicioso. Vivíamos juntos quase há vinte anos. Deus não nos tinha dado filhos, mas o amor, o respeito e tranquilidade que povoavam a nossa vida a dois compensavam essa falta. Não digo que, nos primeiros anos, isso não tenha abanado um pouco a nossa relação, pois ambos desejávamos ser pais. Mas, com o passar do tempo, isso passou para segundo plano e passámos a ver que também podíamos ser felizes sem filhos. Havia os sobrinhos, sempre clientes habituais da nossa casa, os cães e o gato, de quem tanto gostávamos e a quem tratávamos como família, e os muitos amigos que povoavam a nossa existência. Além disso, conhecíamos pessoas que tinham muitos filhos e que, depois, era como se não tivessem nenhum. Sempre fomos apologistas da máxima “Nada acontece por acaso!”. Por isso, a nossa vida ia escorrendo pelos dias, sem grandes preocupações.
Era domingo. Quase meio-dia. Saí da cama, pois era o meu domingo de preparar o pequeno almoço. Desci as escadas, em silêncio, para a deixar dormir mais um pouco. Não deu pela minha saída. Continuava a dormir, na sua forma tão peculiar, com um joelho quase encostado ao nariz e a outra perna estendida. Não sei como conseguia estar assim horas, imóvel.
Como era o primeiro domingo de Dezembro, pus na mesa uma toalha encarnada com guardanapos verdes e, ao meio da mesa, um Pai-Natal de porcelana. Ela adorava o Natal e o mês de Dezembro era sempre vivido com muita expectativa. Na mesa, pus chá preto e forte, como ela gostava, chocolate quente e cremoso, scones quentinhos e croissants também eles a escaldar, doces vários, todos caseiros, feitos por ela, manteiga com sal, fiambre e queijo da serra. À ponta da mesa, um cesto com mangas e romãs.
Olhei a mesa, mais uma vez, e reconheci que, por mais que me esmerasse, nunca conseguia surpreendê-la, como ela me surpreendia a mim. Os pequenos-almoços postos por ela tinham sempre qualquer coisa que me deixava pasmado.
No domingo anterior, a mesa estava toda de branco. Sobre ela, e entre pétalas de rosa, tinha exposto fotografias minhas, dela e de amigos queridos, que fomos vendo, enquanto comíamos, o que nos obrigou a ficar sentados à mesa mais tempo ainda que o habitual, a lembrar velhos tempos e amigos que não víamos há tempo e outros que, infelizmente, já nos tinham deixado. Entre as muitas fotografias, estava uma da avó Emília, que ela adorava. Lembrou-a com saudade e chorou. Disse-me:
- Tenho a certeza de que a primeira pessoa que vou ver, quando morrer, vai ser a minha avó. Tenho a certeza de que nunca ninguém gostou tanto de mim, algum dia, como ela.
- Então e eu, não conto?!
- Contas, mas é um amor diferente.
Enxugou as lágrimas e passámos a outra fotografia e a outro episódio das nossas vidas.
Era assim que ela me surpreendia, com pequenas coisas. Com pequenas frases. Com pequenos nadas tamanho do mundo.
Olhei mais uma vez a mesa e tudo me pareceu perfeito. Adivinhei o abraço apertado que me ia dar e um “amo-te” sussurrado ao ouvido. Tirei o avental e subi as escadas, desta vez já não fazendo questão de não fazer barulho. Estranho continuar tudo em silêncio, tudo apagado.
Acendi a luzinha da mesa-de-cabeceira e ela continuava na mesma posição. Imóvel, morna, olhos semi-abertos. Um arrepio percorreu-me a espinha. Chamei-a. “Ana! Ana, acorda!”
Nada. Só silêncio. Corri ao telefone. Chamei o 112. Fizeram-me responder a perguntas às quais eu não sabia responder. Passaram à Drª. Não-sei-das-quantas, que me voltou a fazer as mesmas perguntas, enquanto a boca me secava e os olhos se humedeciam. Tive de gritar e só depois de gritar me disseram que iam mandar a ambulância. Voltei para junto dela. Voltei a chamá-la, a abaná-la e ela continuou muda e morna.
Não sei quanto tempo passou, até que a ambulância chegou. Mas, na realidade, o tempo tinha deixado de fazer qualquer importância. Não era preciso ser médico para ver que ela estava morta. Não consegui chorar. Tremia, apenas tremia. Não tinha frio, mas os dentes batiam. Depois, depois foi o nada. A cabeça ficou vazia, deixei de pensar e movia-me apenas porque sabia que não podia parar. Tinha tido um ataque fulminante durante o sono. Tinha morrido como ela tanta vez tinha pedido a Deus para morrer. A dormir. E eu? E agora eu? O que ia ser de mim, sem ela?
Quando à noite regressei a casa com alguns amigos, para tentar dormir, a mesa do pequeno-almoço continuava posta. Os croissants e os scones estavam frio e duros e o chá estava de tal maneira frio, que tinha deixado no bule uma mancha que ia ser difícil de sair. Como se isso importasse! Mas a verdade é que, enquanto ia pensando naquelas trivialidades, não pensava nela.
Passou uma semana. É domingo. Hoje, seria ela a fazer o pequeno-almoço. Levantei-me cedo. Deambulei pela sala. Olhei a mesa da cozinha. Vazia. Abri, ao acaso, a gaveta da cozinha que era só dela. Estava desarrumada, mas era uma desarrumação onde ela dizia que encontrava tudo. Havia receitas de bolos, isqueiros, guardanapos coloridos e bilhetes que, por vezes, ela me deixava ou eu a ela. Não fazia ideia de que ela guardava todos aqueles bilhetes. Estavam presos com uma mola-da-roupa azul. Sentei-me e comecei a lê-los. Alguns tinham já alguns anos. Ri. Finalmente, ri com vontade, ao fim de uma semana e não me pareceu pecado. Eram bilhetes engraçados, zangados, amorosos… Houve um que chamou a minha atenção. Estava escrito num guardanapo de papel. Tinha sido escrito num domingo de Dezembro. Há tantos anos! Dizia apenas, escrito na sua letra redonda e certinha: “Este foi o melhor pequeno-almoço da minha vida. Vamos fazer disto um hábito?”
Voltei a pôr tudo na gaveta e comecei a arrumar a mesa do pequeno-almoço. Duas xícaras sobre uma toalha bordada, uma jarra com rosas amarelas, as suas preferidas, um bule de porcelana, que era da avó dela e que nem sequer combinava com as xícaras, com chá preto a fumegar. Estaria tudo perfeito, se não fosse a sua ausência. Naquele momento, prometi a mim mesmo que “os pequenos-almoços para dois” vão continuar, até ao dia em que eu morrer. Chamem-me tonto…

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