Presunção e água benta... Francisco Valverde Arsénio










Lá está ela sentada sobre a perna dobrada em cima da cadeira. Está de frente para a porta e já me viu. Parte um pedacinho do croissant e molha-o na meia-de-leite, baixa os olhos enquanto me dirijo para a caixa de pré-pagamento. Encontramo-nos aqui há muito tempo, tanto que nem me lembro da primeira vez. Sento-me no canto do costume, e enquanto espero que o empregado me traga o café abro o caderno e leio uma ou duas páginas do que tinha escrito anteriormente, ou melhor, passo os olhos pelas letras, e finjo ler, pois tenho dificuldade em perceber o que a minha caneta escreveu. Ela tem em cima da mesa um pequeno bloco de capa colorida, é nele que escreve não sei o quê com a caneta que traz presa ao bloco. Como disse, encontramo-nos aqui há muito tempo, ela naquela mesa e eu nesta, neste canto mais resguardado. Escrevemos um para o outro como por magia, qualquer coisa nos aproximou desde a primeira vez que nos vimos, e no entanto nunca falámos um com o outro, falar de voz activa, com palavras ditas, escrevemos apenas mentalmente. Ela pode não fazer parte dos enredos das minhas crónicas ou dos poemas que crio, eu posso nada ter a ver com os protagonistas que vai colocando naquele pequeno bloco de capa colorida, mas é como se fizéssemos parte um do outro, eu descrevo-a à minha maneira e ela retribui do mesmo modo.
Houve entre nós um interregno, deixámos de vir aqui a este café, perdemo-nos um do outro mas nunca nos esquecemos.
Quero acreditar que escreve para mim ou então sobre mim. E eu? Será que escrevo para ela? Escrevo sobre ela? Não sei quem é, o que faz, que vida tem, o nosso único contacto são estas cadeiras, estas mesas e os nossos cadernos. Encontramo-nos aqui todos os dias à hora do pequeno-almoço.
Parte mais um pedacinho do croissant e molha-o, olha-me e ensaia um sorriso com os lábios apertados. Depois finge escrever e coloca o pequeno bloco na posição de 90º para que eu possa ver o que tem escrito na página anterior, mas é debalde, não consigo ler seja o que for. Como se chamará? Esta dúvida persegue-me de há muito, assim como a minha curiosidade sobre o que escreve se acentua. Deve chamar-se Maria… não sei porque o penso, mas o seu ar angelical, os olhos doces, o sorriso… é Maria, só pode ser Maria, e a partir de agora será Maria que lhe vou chamar.
Que estará a pensar? Olha-me, fixa-se nos meus olhos, ou serei eu que me fixo nos dela? Parece querer adivinhar-me os pensamentos, sinto isso todos os dias, até mesmo naqueles em que não venho ao café. Não desvia os olhos, talvez queira dizer-me alguma coisa. Ela não sabe, mas dá-me cabo dos nervos vê-la molhar os pedacinho de croissant no leite, parece que me quer provocar… porque me olha sempre que faz aquele gesto?
Tenho a folha do caderno vazia de palavras, só agora reparo que tenho estado a escrever mentalmente enquanto a olho, até me esqueci de tirar a caneta da pasta. Que pensará de mim? Raios… não consigo alhear-me dela, parece que tem magnetismo no corpo e no olhar.
Trocou a posição das pernas, a outra devia estar dormente. Sorri novamente para mim e eu começo a desconfiar que aquela doçura é troça, acho mesmo que sempre se riu de mim enquanto calava as palavras, enquanto fingia escrever para mim ou sobre mim. Se calhar nem se chama Maria, eu é que lhe dei este nome, que quererá de mim? Será que tem estado a aproveitar-se das palavras que escrevo para ela? Não! Isso não pode ser, as palavras são apenas imaginárias e ela não pode saber o que penso. Voltou a escrever no bloco, parece-me que faz riscos, talvez não escreva, talvez faça um desenho, há muitos escritores que se julgam desenhista e pintores.
Qualquer coisa nela me exige que me afaste… E depois, talvez nem se chame Maria, talvez nunca tenha escrito nada, talvez eu não a conheça assim há tanto tempo… vou esquecê-la, ou melhor, vou deixar de vir a este café.

Um comentário:

  1. Francisco não desista de ir ao seu café por tão pouca provocação,depois vai sentir a falta da Maria quem sabe não é a única alegria que ela tem todos os dias..... vê lo todos os dias numa rotina intrigante beijinho

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