Um casaco, um espelho e uma gaveta... Francisco Valverde Arsénio


Hoje o sol escondeu-se mais cedo e eu quis ficar sentado a apanhar o ar fresco dos primeiros instantes da noite. Fixei o olhar no sítio onde acordarão as primeiras estrelas, quem sabe elas não me dêem sinal de ti. Um avião deixa sair dos motores duas linhas de fumo, vai alto, muito alto, mas vejo-lhe as luzes de presença a piscar, há um ruído de fundo que envolve o local onde me encontro e sigo com os olhos aquele rasto branco até se perder.

Por breves momentos senti a tua respiração no meu pescoço, estremeci e fui envolvido pelo calor do teu afago. Ao longe, as primeiras estrelas denunciavam a sua presença, e entre elas um outro ponto luminoso olhava para mim… dele veio a tua voz em surdina pedir-me um beijo. Senti a tua mão pousada no meu ombro e quando os nossos olhos se cruzaram reparei que os teus se marejavam de lágrimas. Não entendi o porquê, não consegui perceber, julguei-te feliz sem mim. Mas se estavas feliz, que fazias tu ao lado das estrelas e com a mão sobre o meu ombro? Sim! Sim, eu sei que não estás aqui, que não podemos repetir a tarde que foi nossa, que não estaremos mais defronte do mar ou na esplanada da avenida. Deixei que o tempo passasse e agora sei que jamais te irei abraçar ao pôr do sol. Os teus olhos trancam-se no compasso dos teus lábios que ondulam numa espécie de sorriso; um sorriso amargo, diria eu. Sei que queres reservar os gestos e os abraços para outros braços e deixar que as paredes sejam tuas confidentes, que te acalmem o íntimo. Parece que a luz te foge e outros gestos seguram agora a tua mão.

Eu tenho um casaco a que chamo tristeza, por vezes visto-o, outras lanço-o pela porta fora e deixo-o à chuva e ao frio da noite; tenho um espelho que reflecte o que se sente por dentro e hás vezes apetece-me parti-lo; tenho também uma gaveta onde guardo amarguras e guardo gargalhadas. Não é fácil mas, de quando em quando, após ressentimentos e mágoas, devemos arrancar tudo quanto não nos pertence, principalmente os destroços da vida. Tu existes, e no final da solidão sobram-te apenas braços vazios e lágrimas derramadas como no primeiro choro. Os meus olhos andam distraídos pelo preâmbulo da minha existência. Nem sempre me encontro, e é como se o tempo se tivesse inclinado para o outro lado, para um vale escorregadio onde a vontade de querer ir mais longe me tenta a descer. Os sentidos, esses dilatam-se e crescem tanto que ficam cheios de impressões e depois tornam-se pequenos de mais para neles caberem todos os pensamentos.

Agora já é noite cerrada e caem uns pingos da saudosa chuva, já não vejo o sol nem o rasto do avião… hoje não procurei a tua voz, deixei que o pouco vento que se faz sentir me ensinasse o caminho do esquecimento e me proibisse de frequentar aquela esquina gasta pelas tuas esperas. É verdade, hoje não procurei a tua voz mas respiro a tua ausência como uma ave sôfrega e faminta, e deixei que um ou outro pingo de chuva pousasse na minha mão.

Já é noite cerrada e as escassas gotas de água que caem do céu somadas com as do meu rosto inundam as linhas onde nada descrevo.

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