CEM PALAVRAS SEM PERDÃO... Ana Fonseca da Luz


…Pois se é pecado ter amor ao fado, que Deus me perdoe…
Passamos a vida a pedir perdão. Perdão a Deus, pelo que fizemos de mal. Perdão aos outros, pelas pequenas faltas diárias e que nem pecados são e, principalmente, perdão a nós próprios, pelo que fazemos, pelo que não fazemos, pelo que pensamos, pelo que omitimos e, acima de tudo, por tudo o nos escapa das mãos por negligência, incompetência ou fatalismo.
E um dia, num dia qualquer em que já nada faz sentido, chegamos à conclusão de que nos esforçamos tanto para que as coisas e as pessoas que nos rodeiam dêem certo, que tudo dá certo, menos nós. E aí, vamo-nos adiando e empurrando a vida com a barriga, dizendo que amanhã é outro dia e que amanhã sim, amanhã vai ser tudo diferente! Amanhã, por um passo de magia, vamos realmente ser felizes!
Mentira! Tudo mentira! Amanhã é apenas um outro dia de gestos e sorrisos repetidos, de tédio e de chatice!
Perdão!…Peço perdão! Não era bem isto que eu queria dizer! Não?
Amanhã é apenas mais um dia em que, quer faça frio ou calor, quer chova ou faça sol a vida me vai enrolando e eu enrolando a vida.
Hoje, parti o primeiro prato! Finalmente! Odeio os pratos onde como todos os dias! São pesados, amarelos, medonhos! Todos os dias os olho com desprezo. Todos os dias os maldigo, mas todos os dias os tenho à minha frente. Hoje, esgotou-se-me a paciência! Antes mesmo de começar a comer, e em frente de quem estava à mesa, deixei escapar o prato por entre os dedos e vi-o desfazer-se em pedaços! Em vez de pedir desculpa, ri! Aquele prato partido pareceu-me o meu grito, não lhe chamaria grito, talvez sussurro de Ipiranga. Foi só um prato. Mas um dia, no dia em que acordar do avesso, vou parti-los todos. Um a um, sem dó nem piedade.
E depois, há tudo aquilo que sufocamos, tudo o que nos faz chorar lágrimas que ninguém vê, tudo o que queremos esquecer, mas que nos está entranhado, como um vício! Tudo o que nos faz bem e mal…
Aqui onde me encontro, neste labirinto sem imaginação que todos os dias percorro de olhos fechados, pois já o sei de cor, tudo é programado, tudo é medido, tudo é pesado, para que não tenha nem um grama a mais, nem um grama a menos, para que tudo corra de feição a todos!
A todos?! E eu?!
Perdão! Provavelmente não devia dizer isto…ou será que devia?
Cem palavras sem culpa!
Amorfa, anestesiada, amor…
Desalento, desânimo, desejo…
Fúria, frustração, fascínio…
Paciência, penitência, paixão…
Há tantas palavras de que eu gosto, que eu escondo, que eu guardo para melhores dias. Tantas palavras sem culpa, carregadinhas de culpa…
Hoje foi realmente um dia não. Dia em que nem consegui suportar o peso das minhas asas. Deixei-as arrumadinhas a um canto e permaneci em terra como fazem todos os mortais providos de alma…
Hoje, nem alma pareço ter. O desalento é tanto que, se pudesse, se soubesse, teria dormido todo o dia. Mas não. Arrastei-me para o emprego, carregando nas costas o peso deste mundo e do outro e pedindo a Deus que ninguém falasse para mim, ou então, que falasse o menos possível, para eu não ter de ouvir a minha própria voz.
Até o tempo me contrariou. O sol escondeu-se, sabe Deus onde, e o céu chorou por mim.
Quando cheguei a casa, depois de um dia em que o coração estava espremido, a um canto, e a imaginação, que costuma ser a minha maior aliada, me tinha deixado ao Deus dará, olhei as minhas asas e um mundo de palavras sem culpa bailou diante dos meus olhos. Ainda peguei nelas, mas não tive arcaboiço para as suportar.
Nem me reconheci! Aquela mulher que mora, hoje, dentro de mim, não a reconheço…não me pertence. É por isso que as asas não lhe assentam nas costas, como nos outros dias, melhor dizendo, como nas outras noites!…
Hoje, não gosto de mim! Hoje, tenho medo de mim! Assusta-me esta minha passividade perante o que é inevitável, perante este sentimento temperado de sol e flores que quase me paralisa, perante o que eu quero e o que eu não posso querer. Esta mulher realmente não sou eu!
Arrasto-me, mais uma vez, e recolho à minha concha. Permito-me, finalmente, deitar a cabeça e descansar de um dia que me foi difícil, sabe Deus porquê (nem sei se o próprio Deus sabe!…)
Volto ao princípio da página, para ler o que escrevi e tenho dúvidas que estas palavras sem culpa façam sentido.
Das cem que escolhi para não terem culpa, apenas encontrei noventa e nove! Mas por que é que me há-de sempre faltar alguma coisa?
Depois, não sei se foi o chorar do fado que ouvia, se a saudade que sempre me assiste, que me trouxe a palavra que me faltava:
Sempre!

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