DESALENTO... Ana Fonseca da Luz










Limpas a lágrima que te foi oferecida mas que não foi desejada e recusas o espelho que um dia te mostrou a limpidez do olhar já perdido. Penduras na alma a insensatez das palavras que ainda te ecoam anunciando o fim e chegas à conclusão de que não tens força para acordares. Não tens vontade de te misturares com o mundo que te espera atrás da porta, ainda fechada. Sentas-te em silêncio, na cama e tapas os ouvidos para não escutares os pensamentos que te visitam, apesar de não os quereres para ti.
- Estes pensamentos não são meus – dizes-te baixinho, não vão eles acordar também as angústias, o insensato, as verdades, as mentiras e as omissões, que guardas nessa caixa que te recusas a abrir. Depois, e porque é urgente a vida, apesar de ser ingrata e desordeira, sacodes a tua existência e retomas a normalidade que te é exigida todos os dias, pelos outros.
Retocas a tua alma, tal como retocas o olhar, a boca e a palidez que denuncia mais uma noite mal dormida. Vestes-te maquinalmente misturando as cores numa sintonia perfeita, que é feita maquinalmente, já que não és tu que ali estás, mas sim o desenho incompleto do teu desalento. Interrogas-te se tens fome porque nem disso tens a certeza e acabas por depenicar as migalhas que te salpicam a mesa como se fosses um passarinho que tem medo de abrir as asas e voar. Depois, saciada de uma fome que não tinhas, abres a porta que dá para a rua, para o mundo e sentes-te pequenina, tão pequenina que chegas a ter medo que te não vejam e que te pisem mais uma v. e. z. …
Recebe-te lá fora uma água miudinha e um sol que espreita tímido por entre as gotas da chuva e que te saúdam ao ver-te assim, tão desprotegida e com vontade de voltares para o quente da tua casa e da tua cama, ainda em desalinho.
Ignoras a chuva que te
p
i
n
g
a
os cabelos, e o sol que tos acaricia.
Desces a calçada com o mesmo cansaço de quem a sobe e fazes um resumo mental das tarefas que te esperam. Ficas cansada só de pensares naquela rotina insípida que todos os dias te escraviza mais um bocadinho e voltas a mergulhar na saudade do aconchego solitário que te espera quando regressas ao fim do dia a casa.
No emprego, mastigas os papéis e lambes os números que povoam o teu computador. Mas tu não gostas de números, nunca gostaste, sempre preferiste as letras. Somas débitos, créditos, letras e avales. Trituras com o olhar os que te cercam porque não era aqui que querias estar e ris de piadas que não têm piada, para evitares a inevitávei pergunta “ o que é que tens hoje?”
Devoras as horas que não te satisfazem. Misturas os minutos com os segundos. E o dia escorre… L e n t a m e n t e… chegando ao FIM.
Esboças finalmente o teu mais sincero sorriso. Sais!
Sobes a calçada com a mesma ligeireza de quem a desce. A chuva teimosa ainda persiste em cair. Não te incomodas. Vais até mais devagar… Sabe-te bem aquele lavar d´ alma.
A casa recebe-te de braços abertos. Cheira a lar.
O gato cumprimenta-te feliz e saudoso. Pões a tocar a música que todo o dia te acompanhou mentalmente e cantarolas baixinho. Esqueces-te até do desalento que te embalou todo o dia. Sabe-te bem o silêncio pesado, só quebrado pelo ronronar do gato.
Tens fome. Tens sede. Tens até a impressão de que és feliz. .Arrumas a um canto da tua vida o desalento que te acompanha diariamente, porque é fim-de-semana. Sentes-te GRANDE.
Ligas o computador e decides escrever qualquer coisa. Sorris e martelas nas teclas que já conheces de cor a palavra:
DESALENTO

Nenhum comentário:

Postar um comentário