Feliz Ano Novo...

Deita-se no leito da discórdia, como quem se deita a dormir, numa cama que não é sua…
Resignada, olha a vida de soslaio, enquanto a vida a mastiga, como se tivesse dentes de inquietude.
Despe-se, renova-se, descobre-se na realidade que a sufoca e onde ela se esvai todos os dias mais um bocadinho, como a chama da lamparina, que ilumina o altar onde o santo de barro, chora de dor e de desalento.
Desconhece os cambiantes das manhãs anunciadas pelos pássaros que lhe fazem ninho nos beirais da casa térrea e que lhe sujam a frente da porta, que está sempre aberta, para os que chegam sem avisar, cansados da mudez da vida e da intempérie dos sentimentos sempre velados.
Não come. Tem fome mas não come. Prefere guardar o pão, para depois, esquecendo-se de que o pão endurece tal como a sua vida que todos os dias é mais dura, mais agreste, mais despojada de sentido e de cor. Mesmo assim, senta-se à mesa de olhos baços e apagados e os cabelos num desalinho que a embeleza… Apesar de tudo…
Apesar das rugas, das mãos engelhadas e sardentas pelo tempo, que lhe foge pela porta, que ela mantém sempre aberta, por teimosia…
Rói as unhas como quem rói a dor, cerrando os dentes amarelecidos pelo tabaco, que não fuma…
Sorri da sua imagem, quase transparente, quase inexistente, perante a vida baça, que esconde à pressa debaixo da mesa, sobre a qual o pão repousa, à espera que alguém o coma.
Abre a janela da insatisfação e deita fora os restos da amargura que lhe sobraram do dia anterior.
Beija o marido, que ignora o beijo, que tal como ela, também é transparente.
Faz festas ao cão que lhe ladra, como se não a conhecesse…
Provavelmente não a conhece mesmo.
Ninguém a conhece…
Arruma a um canto da casa a vassoura, com que sempre varre a luz do dia, que lhe entra pela porta, que mantém aberta, à espera sabe Deus do quê.
Depois, enquanto o marido mergulha os olhos nas letras do jornal, que ela não sabe ler, hesita entre ficar, ou deitar-se na cama, que o tempo já desfez, apesar da maciez do seu corpo de outrora, quando a sua carne era um oásis de esperança e prazer, ou a porta da rua que continua aberta, deixando entrar os fluidos da noite e pequenos fragmentos da lua, que ela aproveita para lhe iluminarem os olhos, há tanto tempo apagados.
Encosta-se à ombreira de porta, hesitante…
Se ela partisse agora, o marido nem daria pela sua ausência, tal como não daria pela sua presença, se ela se deitasse na cama desfeita de saudade.
O marido continua lá, com os olhos perdidos naquele mar de letras, como se lesse um poema de amor, ou a carta que ela nunca lhe escreveu, porque não sabia como…
Sabia sim, ser sua escrava e saciar a sua fome nas noites em que a lua se recusava a entrar pela porta, para não tomar conhecimento da sua entrega sofrida àquele sexo que a sujava, entre os suspiros do marido e as suas lágrimas silenciosas.
Raios partam o homem que não morre, afogado nas letras do jornal…
A porta lá está, aberta, tal como a sua cama.
E o marido ali…sem morrer.
Acende-se nela uma franqueza e uma vontade de comer o pão que endurece sobre a mesa.
O marido olha através dela, e as letras do jornal caiem no chão, em desalinho. São tantas, as letras, e ela sem saber o que elas dizem…
Vai buscar a vassoura e varre-as para a rua, para que outros as leiam, porque elas nada lhe dizem…
Encaminha-se para o quarto, onde o santo de barro continua o seu pranto e onde a cama a espera, desfeita de sonhos, enquanto o marido tira os suspensórios que lhe seguram as calças de cotim, de um azul já desbotado…
Sorri quando compara a cor das calças do seu homem, com a cor da sua vida.
O cão que parece reconhecer o seu sorriso, lambe-lhe a mão que lhe cai silenciosa ao longo do corpo, cheio de carnes e de desgostos.
Ouve barulho lá fora.
Devia ter fechado a porta…
Alguém diz alto, para outro alguém:
- Então boa noite! Feliz Ano Novo…
Não consegue deixar de soltar uma gargalhada.
O marido olha-a espantado.
E ela ri, ri alto, como se fosse verdade, como se fosse feliz, como se o Ano Novo lhe trouxesse alguma coisa de diferente.
E deita-se na cama desfeita de sonhos e em desalinho de ideias, enquanto o marido a olha abismado, desconhecendo a mulher que se deita a seu lado.
E o marido que não há meio de morrer, para ela ter sossego.
Não morre mas levanta-se da cama e vai fechar a porta da rua, para impedir que a alegria lhe entre pela casa dentro e lhe transforme a mulher, noutra mulher qualquer.
Depois, deita-se e diz para a mulher, que está transparente, deitada na cama, preparada para o receber no seu corpo:
- Feliz Ano Novo.
E ela ri. Ri alto, tão alto, que ele desiste dela e virando-se para o outro lado, adormece.
Bocadinhos de lua flutuam pelo quarto.
O ar cheira a solidão.
O cão olha-a abanando o rabo, como se a conhecesse há muitos anos.
Ela levanta-se, apanha com a pá, as letras que deitou fora, como se soubesse ler, come o bocado de pão que já endureceu, enquanto diz para o cão que a olha abanando o rabo e de orelhas arrebitadas:
- Feliz Ano Novo.
Depois, fecha a porta à chave, deita-se ao lado do marido, que não há meio de morrer e sonha que no outro dia e porque é Ano Novo, vai ser feliz.

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