Noite branca... Ana Fonseca da Luz


Amanheceu. Desenrolo-me de mim e ajeito as penas que me serviram de cama. Noto que algumas voltaram para as minhas asas. Só umas quantas, teimosas, continuam no chão. Talvez precise delas aí, para me voltarem a servir de cama… Espreguiço-me, tentando afastar este torpor que me invade e abro os olhos numa tentativa de conseguir ver hoje o que não vi ontem. Quem sabe, talvez um destino anunciado por um pássaro mais destemido do que eu, talvez até de um anjo, porque eu ainda acredito em anjos…
Não vejo nenhum pássaro, muito menos anjos, porque, anjos, só os conseguimos ver, se fecharmos os olhos e abrirmos o coração. É o que faço. Cerro os olhos com força e limito-me a ouvir o meu coração. Noto que bate descompassado, tão descompassado como a minha vida em certos dias e é aí, nesse preciso momento, em que o céu ganha mais azul e o vento sopra ainda tímido, que se desenha, um pouco mais à frente, o que me parece ser um anjo. A medo, avanço um pouco. Os anjos nunca se devem acordar, nunca sabemos por quem velam eles, quando todos pensamos que eles dormem. Mas não, não é um anjo. É apenas um homem que, tal como eu, dormita sobre umas poucas de penas. Está enroscado, como se se encontrasse ainda no ventre da mãe. Como se não quisesse sair de lá. Como se só ali se sentisse seguro… Nas costas, tem umas asas. Comparo-as com as minhas. Orgulhosa, noto o quanto as minhas são imponentes, comparadas com as dele. As dele mal se notam, mal se desenham! Noto-as eu, porque asas, é comigo! Talvez nem ele mesmo saiba que as tem…
Sento-me a seu lado, como quem vela pelo sono de uma criança. Dorme serenamente, ou, pelo menos, assim parece. Contudo, parece apoquentado por uma dor que não consigo descrever. A vontade de o acordar, de lhe ver o brilho dos olhos é muito forte. Mas entre o que me dita a cabeça e o coração, sigo o que me dita a cabeça. Deixo-o dormir. Talvez precise deste descanso reparador. Sabe Deus por onde andou!…
Impaciente, aguardo o seu despertar. Aproveito para limpar e alisar as minhas asas, que estão sujas e em desalinho, fruto do meu último voo, que me foi tão difícil e que julguei ser o derradeiro. Olho à volta e tento identificar o sítio onde estou. Tenho a certeza de que já cá estive, mas foi há tanto tempo que, se não fossem alguns sinais indeléveis, mas marcantes, pensaria que era a primeira vez que cá estava.
Finalmente, o homem que primeiro julguei ser um anjo, acorda. A primeira coisa que lhe noto são os olhos de um castanho indefinido e cansado. Depois, o desenho da boca, que tenho a sensação de já ter provado. Depois, o sorriso… Num diálogo mudo, que só os anjos entendem, estreitamos laços e saudamos um passado distante e aconchegante. Quase a medo, comparamos as nossas asas e os poderes que elas nos conferem. E saudamos a manhã, que se anuncia magnífica. Depois, com pena, cada um seguiu o caminho que lhe foi traçado, porque, quanto ao destino, nada há a fazer!
Entretanto, e porque já é dia, recolho as minhas asas… Arrependo-me mentalmente de saber tão pouco sobre o homem que dormia no chão. A sensação do” déjà vu” incomoda-me, mas apago-a com a realidade, com o trabalho e com a minha rotina, sem a qual não sei realmente viver.
Anseio pela noite! E ei-la que chega! Aí, tudo se realiza! Ajusto as asas e faço-me à noite, num voo lento e indeciso. Sei que quero voar, mas, pela primeira vez na minha vida, não quero voar sozinha. Lembro-me então do homem que dormia no chão e voo na direcção onde o encontrei. Quem sabe não está ele também a ajustar as asas para voar? Procuro-o, cá de cima, mas em vão. Vejo apenas um montinho de penas abandonado.
Sem destino certo, lanço-me no céu, numa noite que a lua pintou de branco. O luar é tão intenso que tenho dificuldade em me desviar dos nimbos e dos cirros. De repente, enquanto sobrevoo uma terra que me enche o coração, mesmo por cima de um miradouro, vejo o homem que dormia no chão ajustar as asas e lançar-se num voo indeciso e cauteloso. Noto-lhe as asas mais desenvolvidas e vejo que os seus olhos já perderam os sinais de cansaço.
Aterrámos ao mesmo tempo sobre o miradouro. Cumprimentámo-nos com um sorriso e ficámos a ver aquela noite branca, enquanto dividíamos uma música que há muito estava esquecida. Com a vila toda enfeitada de luzes, aos nossos pés, perdemos o olhar pelo infinito e prometemos um ao outro, sem dizer uma palavra, que não voltaríamos a voar sozinhos.
Enquanto a noite se desfazia para dar lugar a um novo dia, despedimo-nos com um beijo grande e um “Até Sempre”.

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