Transparente... Ana Fonseca da Luz


Atravessas a estrada, cabeça baixa, olhar perdido nos sapatos, vasculhando os bolsos nervosamente, como se de dentro deles, pudesse sair a receita para todos os teus males que, bem vistas as coisas, nem são assim tão graves.
Depois, distante de tudo e de todos, levantas a cabeça, quase com esforço, e olhas sem veres o que te rodeia. Passas pelas pessoas que te olham, apressadas e tu retribuis com o olhar, apagado. Hoje não estás nos teus dias!
Voltas a mergulhar os olhos no chão, como se o teu chão fosse o teu mar distante. Um mar que só tu vês, e que te dá passagem.
Incomoda-te o sol, já fraco do fim do dia e o vento agreste que sopra e que te despenteia, porque mais um dia se finda e tu continuas assim. Sem rumo!
Mesmo assim, continuas o teu caminho ingreme, tão ingreme como é a tua vida e tens vontade de parar no meio da rua para ver se vem um carro e te mata, já que tu não tens coragem para o fazeres. Mas não paras! A covardia que te está entranhada na pele, não te deixa cometer tão
nobre acto, por isso, continuas andando como se fosses um boneco de corda. Atravessas a rua.
És tão transparente que os carros mal te veem, e mesmo assim, desviam-se para não pisarem a tua sombra. Que pena. Continuas vivo. Transparente, ingreme mas vivo!
Entras no café que frequentas há anos e ninguém te diz “bom dia” por isso, também não dizes nada. Limitas-te a pôr as moedas sobre o balcão, que cheira a tremoços e a cerveja quente e o empregado sem sequer te olhar, deixa à tua frente, uma bica curta, numa xícara suja de baton.
Consegues perceber o recorte de uns lábios sensuais e tens vontade de beijar aquela boca que desconheces mas que, tal como a tua, agora, deve saber a café. Depois ficas ali, sentado num banco alto, com as pernas penduradas no nada e a cabeça suspensa em coisa nenhuma. Vais para tirar
o maço de tabaco do bolso mas lembras-te que deixaste de fumar, porque não querias morrer de cancro no pulmão.
Pensas melhor. Tens de morrer de qualquer jeito. Vais até à máquina do tabaco e vês a máquina a engolir-te as moedas durante
alguns segundos, oferecendo-te depois um maço de tabaco onde lês ”fumar mata”.
Voltas ao banco alto. Procuras um isqueiro no bolso que não encontras e apesar de transparente, giras no banco com intenções de pedir lume a alguém, que também queira morrer.
No banco ao teu lado, está uma rapariga, nem feia, nem bonita, pintada de maneira exagerada, vestida com um vestido minúsculo, que te proíbe de lhe adivinhares a roupa interior, já que ela se senta de pernas abertas, convidativa.
Reparas na cor do baton dela. Coincide com o baton que vinha na xícara do teu café e a vontade de deixares de ser transparente, ressurge.
Ela acende-te o cigarro. Inclina-se no teu pescoço e lambe-te a orelha, deixando-te perturbado. Depois segreda-te um preço pelos seus serviços, que te soa absurdo. Mas aceitas o lume do seu isqueiro e o lume que ela te acende.
Sais com ela e deixas atrás de ti, o banco alto a rodar sozinho e a xícara suja de baton carmim.
Num quarto vulgar, cheio de coisas julgares com cheiro a “Madeiras do Oriente” ou outro qualquer perfume rasca, deixas de ser transparente e engoles a vida e a “menina” de um só trago. Despejas nela todas as tuas frustrações sem trocar uma simples palavra e ela, nem parece incomodar-se com o teu silêncio.
Ela tem é pressa. Precisa de pelo menos mais 3 clientes nesse dia, para pagar a renda da casa e para mandar algum dinheiro para a terra, onde a mãe lhe cuida do filho pequeno.
A mãe pensa que ela é contínua numa escola e que trabalha a dias, para fazer mais uns tostões. Ri-se da ingenuidade da mãe. O que lhe vale é que vai sempre tento bons clientes e nunca quis chulos. Ela desenrasca-se sozinha e até agora, tem-se dado bem. Tem até já um belo pé-de-meia,
porque não é de grandes luxos. O quarto é feio mas barato e as roupas são provocantes mas de baixo preço, porque os homens com quem se deita, não merecem mais. Se bem que este, hoje…
Que mágoa será a que o consome? Gostou dele mas é apenas mais um com quem se deita e que lhe permite pagar as despesas e poupar algum. Um dia vai deixar aquela vida…um dia!
Já vazio de ti, voltas a ser transparente, enquanto dás por bem gasto, o muito dinheiro que a “menina” te levou.
Sais, dando-lhe um beijo na testa, em sinal de agradecimento, enquanto ela te olha, como se só agora te visse realmente.
Vê-se que ela é uma mulher carente de afectos e tu um homem carente, nem sabes bem do quê. Provavelmente, és apenas transparente!
Voltas a fazer o percurso, de volta para casa, de onde não devias sequer ter saído, de cabeça baixa, a olhar os sapatos, cigarro meio fumado entre os dedos. Quase és atropelado por um carro, não porque queiras morrer, mas porque estás distraído, saboreando o beijo de carmim, do qual, mesmo sem querer, já sentes falta.
Entras em casa. Espera-te um silêncio absoluto. Há quanto tempo te deixou ela? Já nem sabes! Sabes apenas que a solidão te começa a ser insuportável e que não suportas o seu peso. Sufoca-te. Mata-te da mesma maneira como te mata o cigarro.
Hoje não consegues ficar ali, sozinho…Se ficares, és bem capaz de dar um tiro nos miolos e apercebes-te que afinal, já não tens assim tanta vontade de morrer.
Desces as escadas porque não tens tempo para esperar pelo elevador e sais disparado pela porta da rua, antes que morras sufocado e transparente.
A “menina” de lábios de carmim e de gosto a café espera-te encostada à parede.O teu sorriso ilumina-se. Ela cora, com uma ingenuidade, que é impossível ainda ter e vai ao teu encontro enquanto a olhas.
- Vim agradecer-te o beijo na testa. Para mim, significou muito. E tu? Onde vais?
- Vim cá fora, respirar. Queres subir e fazer-me companhia?
Para o dia lhe correr como ela queria, ainda devia fazer mais três ou quatro clientes mas ia tirar uma folga e ficar com aquele homem que mal tinha falado com ela mas de quem ela tinha gostado e que lhe tinha dado um beijo na testa.

- Essa cor fica-te bem, disse-lhe ela enfiando o seu braço no dele, como se fossem um casal.
Ele reparou que tinha vestido um pullover encarnado e que nem tinha dado por isso, devido à sua consentida transparência…

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