Petite Fleur... Ana Fonseca da Luz


Onde quer que estejas, não te esqueças, nunca, do muito que te quero, ma petite fleur…

Quando a minha irmã nasceu, eu tinha 6 anos e aguardava-a com a impaciência própria da minha idade. A minha mãe disse-me que tinha de ir para o hospital, porque era lá que as cegonhas iam deixar os bebés e, embora não percebesse muito bem aquela logística, porque afinal morávamos a dois passos do hospital, logo, não devia custar-lhe muito voar mais um bocadinho e deixá-la em casa, evitando assim que a minha mãe tivesse de sair de casa, não me importei muito.
O que eu queria mesmo saber era se era uma rapariga ou um rapaz.
Como, naquele tempo, não havia ainda meios para saber o sexo e o que importava mesmo era nascer saudável, a minha mãe limitou-se a dizer-me que um anjo lhe tinha cochichado ao ouvido que era uma rapariga. Confesso que fiquei um bocadinho desapontado e, no entanto, aliviado. Assim, não teria de dividir os meus brinquedos com ele.
E lá fiquei em casa da minha avó materna, porque, afinal, aquilo não era só chegar lá e trazer o bebé para casa. A minha mãe ia ter de ficar alguns dias, porque os bebés vinham muito cansados, depois de uma longa viagem no bico da cegonha e só quando estivessem recompostos da viagem, é que podiam vir para casa. Foi então que percebi por que é que as cegonhas não faziam a entrega directamente em casa.
Lembro-me perfeitamente que estava a almoçar, quando o meu pai telefonou a avisar a minha avó que tinha nascido uma rapariga.
- E como é ela? – perguntou a minha avó ao meu pai, de lágrimas nos olhos.
- É uma flor, minha sogra, uma pequena flor – respondeu o meu pai, também ele comovido, porque, lá no fundo, queria muito ter uma menininha que lhe corresse pela casa, de laçarotes no cabelo, para ele mimar tanto ou mais do que me mimava a mim.
A minha avó, que era francesa embora falasse muito bem português, porque há muitos anos que morava em Portugal, disse-me, de sorriso rasgado de orelha a orelha e de olhos brilhantes.
- Nous avons une petite fleur!
Pronto, estava safo. Já não tinha de dividir os meus brinquedos.
No outro dia, à hora da visita, lá fui eu vestido a rigor e cheio de avisos da minha avó para me portar bem, ver a minha irmãzinha. Estava mortinho de curiosidade. Sempre queria ver em que estado a cegonha a tinha entregado à minha mãe. Afinal de contas, era uma grande viagem de França até Portugal, para uma criança fazer no bico de uma cegonha, apesar da minha avó e a minha mãe me terem dito que ela vinha num cestinho fechado e muito bem tapadinha.
Por que raio não eram os bebés feitos em Portugal? Que disparate!
Quando entrei no quarto, todo branquinho, a minha mãe estava recostada na cama, com um pequeno embrulho cor-de-rosa nos braços e o meu pai praticamente babava-se para cima das duas.
Confesso que, naquele momento, senti um pouco de inveja, pareceu-me ver a imagem da Sagrada Família que a minha mãe tinha sobre a cómoda do quarto dela. Mas, quando o meu pai me abriu os braços e a minha mãe me chamou de “boneco”, era assim que ela me chamava, embora estivesse proibida de o fazer em frente dos meus amiguinhos, o ciúme desapareceu logo e corri para conhecer aquele bocadinho de gente que a cegonha tinha trazido no primeiro dia de Primavera.
A minha mãe puxou as mantinhas para trás, para eu a ver e fiquei surpreendido. Na verdade, a minha avó tinha razão, era uma “petite fleur”. Pequenina, rosadinha e muito, mas mesmo muito bonita.
A minha avó pegou-a ao colo, mandou-me sentar, pô-la no meu regaço e disse-me uma daquelas coisas que só as avós sabem dizer, no seu português correcto, mas cheio dos “erres” que só mesmo os franceses carregam na língua:
- Esta é a nossa Petite Fleure e tu, Tiago, vais ser o jardineiro particular dela. Vais ter de olhar por ela, todos os dias e gostar dela sempre, mesmo quando ela fizer disparates…
Eu estava embevecido com aquela menina ao colo, toda vestida de cor-de-rosa que, de vez em quando, abria os olhitos, como se quisesse conhecer-me, como se dissesse também ela que eu tinha de olhar por ela e fazer o que a minha avó tinha acabado de dizer.
Como ela era pequenina, mas já me começava a pesar nos braços, entreguei-a à minha mãe que me perguntou, sorridente:
- Então, boneco, que nome achas que devemos pôr à bebé?
Sem sequer pensar, respondi prontamente:
- A avó diz que ela é uma “Petite Fleur, mas como não lhe podemos pôr esse nome, porque, quando for para a escola, todos os meninos se vão rir dela, acho que ela se deve chamar Rosa.
Embora não fosse o nome que os meus pais tivessem idealizado para ela, ficou Rosa para todos e, para nós, lá de casa, ficou “Petite Fleur”.
No dia em que finalmente a minha irmã foi para casa, porque o médico achou que ela já estava forte, é que eu reparei que a minha mãe já não tinha a barriga grande que tinha levado para o hospital.
Mais uma vez a minha avó se encheu de sabedoria e me explicou que a minha mãe já não tinha barriga, porque a barriga era uma fábrica de leite para a bebé, uma vez que ela não tinha dentes e não podia comer e que o leite agora estava nas maminhas da mãe, para que ela pudesse alimentar a Rosinha.
As coisas que a minha avó sabia e a maneira como ela as explicava eram realmente fantásticas…
Lá em casa, estávamos todos apaixonados por aquela menina. Eu até me comecei a portar melhor, a ter maneiras à mesa e a brincar aos índios e cowboys só no quintal, para não incomodar a minha mãe e a Petite Fleur, que nunca mais crescia para poder brincar comigo.
Não conseguia perceber como ela não se chateava de passar a vida a dormir, a comer e a chorar, com tantas brincadeiras que eu lhe podia ensinar…
Mas o tempo, que nunca pára, foi passando veloz e todos os dias a víamos crescer, apesar de não ser à velocidade que eu desejava.
Quando a Rosinha fez dois anos, os meus pais começaram a ficar preocupados, porque ela ainda não falava e eu estranhava o facto de me fartar de fazer macaquices e ela quase nunca se rir. Mesmo assim, era só a mim que ela, de quando em vez, dava um sorriso.
À medida que ela ia crescendo, também a preocupação dos meus pais aumentava, embora tentassem sempre disfarçar à minha frente. Mas eu não era parvo e bem reparava que a minha mãe entristecia de dia para dia porque a Rosinha não falava, só ria para mim e fazia birras horríveis sem razão nenhuma de ser e, além disso, se ouvia mais barulho do que o habitual, chorava sem parar e era muito complicado conseguir calá-la.
Um dia, os meus pais resolveram levá-la a um médico muito importante que a minha avó conhecia, para ver se ele percebia o que se passava com ela.
Chegaram a casa com a alma de luto e o tormento nos olhos. Compreendi que algo se passava com a Rosinha.
A minha avó sentou-me no colo, apesar de eu já ser um rapaz de nove anos e já achar o colo uma coisa para bebés, mas o colo da avó era irrecusável e explicou-me que a Petite Fleur era diferente dos outros meninos.
- Mas diferente como, avó? Ela é tão linda, apenas não é faladora como eu…
Mas a avó explicou melhor.
- Sabes, Tiago, a Rosinha tem algumas dificuldades que tu não tens. É como se vivesse num mundo só dela e não gosta que mexam no mundo dela.
É um mundo silencioso, embora ela nos oiça, não gosta de barulho. É por isso que chora, quando corres pela casa, a gritar. Quando o som da televisão está mais alto. É como se ela não nos entendesse e ficasse zangada com ela mesma por isso.
Tens de aprender a respeitar os silêncios dela. Além disso, boneco, é para ti que ela ri.
Lembras-te do que te disse quando ela nasceu? Ela é uma flor e tu, o jardineiro que deve cuidar dela, uma vez que ela te escolheu.
Não sei se compreendi muito bem o que se passava com a Rosinha, mas, a partir desse momento, passei ainda a gostar mais dela, se é que isso era possível.
A Rosinha, que só brincava com dois ou três brinquedos, passou a interessar-se pelo movimento dos meus carrinhos, mas só dos que eram encarnados. Por isso, escondi todos os outros, para que ficasse feliz.
Um dia, viu-me fazer os trabalhos da escola e sentou-se a meu lado, como que hipnotizada pelo girar do lápis na folha de papel.
Resolvi dar-lhe uma folha de papel e o meu lápis encarnado. Se vissem a alegria com que me sorriu. A minha mãe ficou maravilhada e sentou-se ao nosso lado, em silêncio, a olhar-nos de lágrimas nos olhos.
Todos os dia eu via um pequeno milagre acontecer à minha irmã. Já a minha mãe, todos os dias se enchia de esperança, mas de uma esperança cautelosa.
O meu pai continuava a poupar nas despesas, para todos os meses poder levar a Rosinha àquele médico muito bom, mas muito caro. E todos os meses, também ele ficava maravilhado com os progressos dela.
Um dia, a Rosinha, que nunca tinha pronunciado uma palavra e que estava quase com 4 anos, olhou-me nos olhos, coisa que raramente fazia e disse-me:
- Eu gosto do Tiago e dos lápis encarnados.
Fiquei tão contente que ri alto e bati palmas de contente.
A Rosinha primeiro, pareceu assustada com a minha explosão de alegria, mas depois bateu palmas também e voltou a repetir:
- Eu gosto do Tiago e dos lápis encarnados.
Esta foi a primeira batalha de muitas batalhas que a Rosinha tem vencido ao longo da vida. Não me interessa que ela não ganhe a guerra, interessa-me que seja feliz, integrada nesta sociedade cruel e que ela saiba que me tem sempre a seu lado. O seu fiel jardineiro, para colher todas as flores que a vida lhe vai dando a ela e a nós, família, todos os dias.
A Rosinha é autista.
A Rosinha é uma flor, uma pequena flor, que muitas vezes fica de olhar perdido num mundo que é só dela, e onde todos nós não conseguimos entrar.
Continua a ter paixão por tudo o que é encarnado. Mas já gosta do azul, do verde, do lilás, de ouvir música baixinho e até de dançar.
A Rosinha é autista, mas está apaixonada pela vida e eu continuo o ser o seu ladrão de sorrisos.
Petite Fleur, esta é a homenagem que te deixo. Este punhado de palavras, que um dia destes te vou ler e que tu vais perceber, e que te vão fazer rir e, quem sabe, até chorar, porque vais perceber cada palavra, mesmo que a meio da minha leitura te distraias e partas para esse mundo que é só teu e que eu por vezes invejo.
Do teu jardineiro, que te ama.

Tiago

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