O ladrão de sorrisos... Ana Fonseca da Luz




Todas as tardes ele passava à mesma hora e todas as tardes ela o esperava, expectante, enfeitada de sentimentos, todos os dias novos, escondida por detrás da grande janela, para que ele não a visse, mas para que lhe adivinhasse a presença delicada e efémera, perfumada de sol e de flores.

Ele passava, em passo lento, com o cigarro ao canto da boca, já apagado, olhava para a janela e sorria, adivinhando o sorriso dela.

Ela, pela fresta da janela, retribuía o sorriso, e entrelaçava uma mão na outra num
jeito nervoso e febril.

Depois ele, hesitante, parava em frente à janela, por breves instantes e retribuía-lhe
o sorriso, que ela guardava fundo, no seu coração.

Ele voltava a acender o cigarro, há muito apagado, ao canto da boca e continuava o
caminho em passo lento e estudado sem olhar para trás, apesar de saber que o seu coração tinha ficado cativo por detrás daquela janela.

Ela via-o afastar-se e encostava-se mais à fresta da janela para lhe ficar com o cheiro e lhe guardar a imagem, até ao outro dia, à mesma hora.

Era quase um ritual…há já mais de um ano.



Ela ia ao lado do marido com o filho pela mão, quando se cruzaram pela primeira
vez. O marido ia de cara fechada e ela, mãe amorosa, sorria para o filho e consertava-lhe o chapéu de palha na cabeça. Mas o vento foi mais rápido do que ela e arrastou o chapéu de palha para longe. O marido continuou, passo lento e indiferente ao “oh” que tanto ela, como o filho saltaram, rindo, no momento em que o vento fez voar o chapéu, indo bater num homem que vinha de frente para eles.

Mãe e filho correram atrás do chapéu que rodopiou no ar antes de bater na cara do
homem, que soltou uma gargalhada, quando ela se esticou e lhe pediu o chapéu, pedindo desculpa.

- Mas não é a senhora que tem de me pedir desculpa, é este vento manhoso de fim de
tarde, que já devia estar a repousar, uma vez que todo o dia soprou…

Ela achou piada e sorriu-lhe, enquanto enterrava o chapéu na cabeça do filho, deixando-lhe apenas os olhos de fora.

O marido continuava andando, indiferente ao reboliço de sentimentos que aquele
vento tinha trazido para aqueles dois estranhos. O coração tem destas coisas…

Depois, ela seguiu o seu caminho com o coração num alvoroço e num trote de cavalo
assustado, mas feliz.

O filho continuava a puxá-la pela mão mas os pés não lhe obedeciam, já que o coração tinha ficada prisioneiro naquele olhar, para onde o vento a tinha puxado.

Mas no outro dia, mesmo sem vento, voltaram a encontrar-se ao dobrar uma esquina sinuosa da vida.

Ela corria, porque o tempo lhe era contado pelo marido, ele vagueava pela rua, na ansia, de voltar a sentir o perfume dela que cheirava a violetas, acabadas de colher.

Por isso, o destino, ou lá o que lhe queiram chamar, empurrou-os para os braços um do outro e as mãos de ambos tocaram-se para que os corpos não se tocassem e não se
sentissem obrigados a pecar ali mesmo, trocando o beijo que ambas as bocas suplicavam. E então, ele, em vez de lhe roubar o beijo, roubou-lhe um sorriso e devolveu-lhe as cores de carmim ao rosto.

Ela tirou-lhe o cheiro do cigarro e perfumou-o de violetas e outras flores que
ambos desconheciam mas que cheiravam, sem dúvida, a paixão.

E todos os dias às seis da tarde, ela corria para ir buscar pão, e ele corria para
ficar com cheiro a violetas.

E todos os dias, as mãos se tocavam ao dobrar da esquina, enquanto os corpos ardiam
numa combustão lenta, que era preciso apagar.

Ela abriu a janela. Ele ouviu o barulho da janela a abrir, que há tanto tempo ansiava ouvir e parou.

Ficou ali, à espera que ela o chamasse.

Mas ela desconhecia-lhe o nome. Apenas lhe conhecia o cheiro e tabaco e a violetas,
que cheiravam a paixão.

Então ele virou-se, porque o cheiro a violetas se tornou irresistível e ela sorriu-lhe
entregando-se àquela orgia de sentires, que lhe fazia o corpo estremecer.

Era quase noite…

Era a hora deles.

A hora em que os corpos de ambos pediam afagos desmedidos e entrega sem limites.

E os dois, envoltos no aroma de violetas, amaram-se de lado de dentro da janela,
porque apenas eles dois existiam naquele momento.

Não fizeram juras de amor. Nem promessas que não podiam cumprir.

Ele apenas lhe jurou que seria para sempre o seu ladrão de sorrisos e ela prometeu-lhe que o cheiro a violetas, deixaria de ser o dela, para ser o deles.

Nenhum comentário:

Postar um comentário