SEI-TE DE COR... Ana Fonseca da Luz










Não te inventei. Não és fruto da minha imaginação, às vezes, rica de mais. A verdade é que te sei de cor. As linhas do teu rosto, as tuas mãos, compridas e leves, como as mãos de um pianista, os teus olhos, de um castanho vulgar, tão vulgar que não o consigo descrever e o teu coração, que não se via, mas que era grande e belo. É da tua bondade que tenho mais saudade. Dos teus gestos simples e suaves, da força do teu olhar e dessa luz que emanavas e que só eu via, porque só eu te AMAVA. Tanta gente te amava, porque era impossível não te amar, mas AMAR, só eu. Guardo de ti todas as lembranças. Só boas lembranças. Mesmo as coisas que, na altura, me pareceram menos certas, até essas coisas, eu percebo, hoje, que foram grandes e belas. Até quando me pediste para nos sentarmos, pois tinhas um assunto sério para falar comigo e me disseste, sem rodeios, que sabias que já não ias viver muito tempo, até nessa altura em que eu te achei cruel, por não me teres mentido, ou pelo menos por não me teres preparado para essa verdade tão dolorosa, até isso agora me parece certo e bem feito. Há coisas que simplesmente só se podem dizer, dizendo. Há verdades que não podem ser adiadas.
Sei-te de cor! Cada palavra, cada olhar, cada sinal. Era isso, essa sintonia indelével que nos unia, que nos fazia ver o mundo de uma forma harmoniosa e bela. Era como se tivéssemos só um par de olhos e, por isso, víssemos da mesma forma. Uma só boca, onde o amargo se tornava doce, e um só coração. Por isso, quando o teu parou, há precisamente dois meses, o meu queria recusar-se a bater sozinho. As minhas pernas, as minhas mãos e todo o meu corpo como que adormeceram. Entreguei-me à nossa cama, agora já só minha. Deixei de ter fome, deixei de ter sede e a minha vontade era só uma, morrer.
Passaram dois meses e, por te saber de cor, por saber que lá, naquele lugar etéreo onde te encontras, me vês e sofres com o meu sofrer, por isso e só mesmo por isso, hoje me obriguei a levantar da cama. Primeiro, deambulei pela casa. Tudo me parecia vazio. Não estavas em lado nenhum e, no entanto, estavas em todo o lado. No cheiro das tuas roupas, que permanecem tal como as deixaste e porque não permiti que alguém lhes mexesse, na tua escova de dentes, já velha e torcida pelo uso, no teu sofá de orelhas, no último livro que leste e nos olhos do nosso filho. Por isso me levantei. Porque te sei de cor e porque te arrasto comigo para onde quer que vá. Não tenho pena de ti. Tenho pena de mim. Mil vezes ter morrido eu. Mil vezes estar eu fechada nessa caixa de madeira brilhante, cheia de rendas e cetins.
Depois de ter percorrido toda a casa, à tua procura, fechei os olhos e, encostada à parede do nosso quarto, senti que me amavas, tal e qual como da última vez. As tuas mãos, sábias e carinhosas, percorreram o meu corpo e vi que também tu me sabias de cor. Deixei-me escorregar pela parede, lentamente, porque as minhas pernas se negavam a carregar um corpo que, praticamente, não lhes pertencia. Se chorei? Não, não chorei. Apenas procurei o teu olhar e não o vi. Por que me negas isso? Por que me negas um sinal? Por que não me dizes que me podes ver, que me podes sentir, para que eu possa serenar? Por que teimas só em deixar o teu cheiro, por que me roças a nuca com a ponta do nariz, em vez de me olhares nos olhos? Por que me castigas? Não achas que já sofri demais ?
Amanhã, vou levantar-me novamente e procurar-te lá fora. É isso, amanhã vou abrir a porta que dá para o jardim e ver se te encontro a cuidar das orquídeas. Talvez seja por isso que não te encontro em casa. Talvez queiras que eu saia. Talvez… Hoje, não tenho forças para mais. Já esgotei toda a minha energia. Vou voltar para a nossa cama, agora já só minha, e procurar-te na cova da tua almofada, no teu lado da cama, que me parece ainda quente do teu corpo. Não, não é imaginação minha. Ainda sei o que digo. Apesar de cansada e lenta, ainda sei o que digo e sei perfeitamente que os meus sentidos não me enganam.
Entrego-me mais uma vez à cama, como quem se entrega nos braços de um amante. E só aí, enrolada em mim própria, pareço encontrar algum consolo. A minha mão, teimosa, volta a percorrer o teu lado da cama, na vã esperança de te encontrar. Nada. Só o teu cheiro, que também conheço de cor. Cheiras a orvalho e a pétalas de rosa. Cheiras a ti e eu absorvo esse cheiro, como se de oxigénio se tratasse.
Volto a chorar, porque recuo no tempo, nesse tempo vertiginoso e estou novamente a ver-te definhar naquela cama de ferro, branca e onde tanta gente já fez o que tu agora fazes, morrer. Os teu olhos, encovados e de um castanho vulgar, estão agora perdidos nas órbitas e já não são castanhos, mas cinzentos. Tão cinzentos como a minha alma, como a minha voz, que me soa tão falsa, quando te digo que estás com muito melhor aspecto. Ris na minha cara e, porque também me sabes de cor, chamas-me mentirosa, enquanto, com dificuldade, me tentas dar a mão. A tua mão, outrora grande e bela, é agora um saco de ossos, mas que eu beijo com tanto amor e tanto fervor que aposto que te estou a magoar. Não dizes nada. No entanto, e pela primeira vez, vejo-te chorar. O meu mundo desmorona-se. A minha vida cai-me aos pés e o coração quase pára. Por que não estou eu no teu lugar? Eu, que sou má, eu que sou egoísta, eu que te amo mais que a mim própria? De repente, a tua mão liberta a minha. Os teus olhos, agora cinzentos, olham os meus e dizes-me, num fio de voz: “Tenho de ir… estou tão cansado!” A cabeça pende-te serenamente para o meu lado e esboças um sorriso que só eu vejo. Chamo-te em vão, porque tu já não me ouves. Tens os olhos semi-abertos. Parados. Mortos. Num grito inaudível, fecho-te os olhos com as pontas dos dedos, e segredo-te ao ouvido: “Não te esqueças de que gosto muito de ti.” Depois, foi o nada.
E aqui estou, na nossa cama, agora já só minha, enrolada em mim mesma, procurando-te, sem te encontrar. Agora, vou dormir. É tão bom dormir! É como se morresse, durante algum tempo. Depois, vem o acordar e a dor profunda que é saber que estou viva e tu não e o voltar a lembrar tudo novamente. Também estou cansada e, no entanto, não consigo morrer. Antes de adormecer, ainda oiço a minha mãe dizer ao meu filho: “Vais ver que amanhã a mãe vai estar melhor e vai levar-te à escola.” Fecho os olhos e prometo a mim mesma que, amanhã, me vou levantar e cuidar do nosso filho e das tuas orquídeas. No entanto, como me sei de cor, tal como te sei a ti, sei que, mais uma vez, não vou ser capaz de cumprir esta promessa.
O meu filho entra no quarto e destapa-me a cabeça. Olha para mim, com os olhos do pai e diz-me, numa ingenuidade própria dos seus sete anos: “Se não fores amanhã pôr-me à escola, nunca mais venho dar-te um beijo, à noite e o pai vai ficar zangado contigo, porque ele não gosta que tu me mintas.” Num esforço sobre-humano, sento-me na cama e digo-lhe: “Amanhã ainda não vou pôr-te à escola, mas prometo que me levanto e que vamos almoçar e jantar juntos.” Está prometido. O sorriso do meu filho ilumina-se e é o sorriso do meu marido que eu vejo. Abraço-o apertadinho e ele retribui o abraço com os seus bracinhos roliços. Depois, olha para mim e diz: “Sabes, mãe, cheiras ao pai!” Volto a apertá-lo junto ao meu peito e despeço-me dele, com um beijo no nariz. “Até amanhã, mãe.” “Até amanhã, querido.” Antes de a porta se fechar, o meu filho acena-me e quase que apostava que vi o meu marido com um braço por cima do ombro dele, enquanto me acenava com o outro.
Era daquele sinal que eu precisava. Era daquele acenar. Era de ver os seus olhos que, afinal, sempre estiveram ali, mas que eu, cega, não queria ver. Foi preciso o nosso filho me trazer o teu recado, para eu ver o que sempre ali estivera. Tu.
Amanhã, vou-me levantar. Vou cuidar das tuas orquídeas. Vou arejar o nosso quarto e vou ouvir, baixinho, as nossas músicas, em especial o “125 Azul”, dos Trovante, que é uma música que me diz tanto. E porque te sei de cor, sei que vais estar sempre presente.
Amanhã, o teu cheiro vai estar mais intenso. Vou pôr as tuas roupas no roupeiro, as roupas que há dois meses repousam na cadeira do nosso quarto, vou guardar a tua aliança, que ainda mantenho sobre a cómoda, tal como a deixaste no último dia que dormiste no nosso quarto e vou começar lentamente a viver. Vai-me doer fundo abrir esta janela, que fechei quando morreste, mas tenho de dar um sentido à minha vida, porque, sabendo-te de cor, como te sei, sei que é isso que queres de mim.
As pessoas sentem falta do teu sorriso na rua. Falta do teu bom-dia, que dizias a toda a gente, até aos cães vadios. Do teu andar gingão. De ti.
É por isso, é para te manter vivo, que vou sair da minha toca e falar de ti sempre que as pessoas quiserem, mesmo as que me olham com olhos de pena, mesmo as que não têm coragem de dizer nada.
É por te saber de cor que gostei, gosto e gostarei sempre de ti.

Dedicado, do fundo do coração, ao meu amigo Manel, o homem de sorriso fácil, e à minha querida Ana, que perdeu o homem que ela sabia de cor.

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