VIVE!... Ana Fonseca


Há algo que a impele para a escrita. Algo incomum, inusitado, transparente, mítico, omnipresente… é como se só se sentisse completa quando escreve, quando contempla a alvura desértica da folha de papel onde o aparo tece oásis a despontar nos contornos das letras, no pintar da mancha gráfica que aconchega em mel e seda o leito das palavras. É como se saboreasse o trigo da vida na palavra que lhe preenche as veias, que é o seu sangue, a sua seara de sonhos refeita em espigas matizadas de cor, odor e sabor. Nesses momentos, deixa-se respirar pelas letras.

Hoje é quase desesperada que se encontra face a face consigo neste inquebrável espelho eternizado numa lombada de vida, desenhada a madeira num coração de papel. À sua mente só vem a frase que ouve desde há momentos… “Não há receitas!” e o seu coração contorce-se num espasmo de dor e liberdade como se mais uma vez estivesse a galgar mais um abismo, a erigir uma ponte onde nada se vislumbra à verdade do olhar. No meio de tanta agitação, sorri e enceta um diálogo de si para si.
- Como não há receitas? – pergunta-se incrédula.
- Não, não há. De nada te vale os livros que criaste ao longo dos tempos, os recortes que teceste em páginas bordadas a carinho, suor e lágrimas. Nada te pode preparar para o momento seguinte. – replicou o seu enigmático interior.
- Mas… - ensaiou uma tentativa de contrapor.
- Sem mas nem meio mas. Ouve-me. Não, melhor, aquieta-te, fica assim, só, muito devagar, nesse limbo da existência e sente-me.
Nada diz, já se encontra para lá dos muros, para lá da carne. Agora é toda ela sentidos, sensações absorvidas até à exaustão de um nada querer, de um nada saber, numa avidez incorruptível de saber…

Do alto das suas asas contempla a aridez que tanto a atrai… em dunas de Luz e cor desenharam-se letras a formar a enigmática mensagem…

“Não há receitas!”

E a folha desponta em rios, em árvores, em caules, em flores esvoaçantes, em cantos harmoniosos de mil odores quando se entrega ao fluir da tinta e nada antecipa…
Agora, vive!

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